O economista Antonio Delfim Netto recebeu a equipe de reportagem da Revista RI em seu escritório no bairro do Pacaembu, na cidade de São Paulo, onde mantém uma rotina agitada. Aos 86 anos, com muita disposição, bom humor e inúmeros compromissos na agenda, Delfim conta seu segredo: “Eu não trabalho, me divirto. Gosto muito do que faço.”
Sobre a economia brasileira, ele avalia que está estagnada e enfrenta problemas desconfortáveis, mas não é o “apocalipse”. Seja quem for o próximo presidente da República, o ajuste fiscal e os investimentos em produtividade devem ser os itens mais importantes da agenda. O economista destaca ainda que o orçamento precisa ser minuciosamente revisado, a partir de uma “base zero”.
Em relação à polêmica sobre a nota divulgada pelo Santander, e a análise da consultoria Empiricus, o ex-ministro da Fazenda, afirma que a reação do governo foi exagerada. Ele defende a liberdade de atuação dos analistas de mercado.
Acompanhe a seguir, a entrevista exclusiva concedida à Revista RI:
RI: Qual é a sua avaliação sobre o caso Santander?
Delfim Netto: A reação governo foi muito intempestiva, completamente desproporcional ao que tinha acontecido. O analista tem liberdade para comentar o que quiser, por isso é classificado como analista, se preparou, fez sua formação, de forma que pode-se não concordar com ele, mas não era necessário dar uma resposta que inclui uma espécie de ameaça. Aquilo foi exagerado. Os analistas prestam serviço, caso contrário não existiriam. Eles dão visões alternativas. Algumas vezes têm razão, em outras, caem em uma vereda, de certo modo, equivocada, mas não fazem nenhum mal. Em minha opinião, foi um mal entendido porque deu impressão que era uma posição política, quando não era. O banco, por sua vez, ficou com a imagem um pouco prejudicada porque as pessoas agora vão ter muitas dúvidas sobre os relatórios emitidos. Dá a impressão de que daqui pra frente só irá fazer “projeções” que agradem o governo. Isso não ajuda nem o governo. O mínimo que se faz com a crítica é desconsiderá-la e, o máximo, prestar atenção nela e corrigir o que se faz. A crítica não produz nenhum mal.
RI: Quais as considerações do senhor a respeito da nota emitida aos correntistas do banco?
Delfim Netto: O que se pode criticar é o mecanismo de comunicação do banco. Não foi em um relatório detalhado elaborado pelo banco. Aquilo foi, no fundo, uma prestação de contas. É uma forma intempestiva também de comunicar. Os dois lados estavam equivocados - a forma da mensagem do banco, não o conteúdo, e a reação exagerada do governo. Houve erro na forma de comunicação, no instrumento de comunicação. Se estou recebendo um informativo da minha conta corrente, não tenho que receber uma mensagem como aquela, mas o governo não deveria ter se incomodado. E, por fim, a reação do banco foi estranha, colocou em dúvida a qualidade das análises.
RI: O senhor acredita que foi um problema pontual ou agora haverá certo comedimento?
Delfim Netto: Eu até suspeito que cada analista se sentiu, de certa forma, atingido e a reação das instituições para as quais eles trabalham mudou porque sabem que o comportamento do Santander deu margem à muita crítica. Isso estimulou os analistas a um ataque até um pouco mais duro e inibiu as instituições de restringirem a ação dos analistas. O resultado final é a maior liberdade. Tenho notado que cada analista que se supõe independente faz uma crítica mais dura do que faria caso não tivesse existido o incidente.
RI: A coligação de Dilma Rousseff entrou com uma representação contra dois anúncios da consultoria Empiricus. No entanto, o TSE rejeitou. A Empiricus também foi criticada por um de seus relatórios. Qual é sua opinião à respeito desta situação?
Delfim Netto: A Empiricus é uma consultoria sofisticada. Não se deve tentar impedir a manifestação de opinião. Mesmo porque em se tratando de economia não existe uma lei física a ser violada. É completamente despropositado esse tipo de comportamento.
RI: As eleições devem ser tensas este ano. Como ficam as análises econômicas nesse clima quente de disputa entre os candidatos?
Delfim Netto: Não existe política sem economia e não existe economia sem política. O economista que ignora as circunstâncias políticas, não é economista. A economia quando não pretendia ser ciência se chamava economia política. Depois, ganhou a pretensão de ser uma ciência matemática, porém, economia é uma ciência moral e histórica. Economia é uma disciplina e dá instrumentos para uma administração melhor. Separar a análise política da econômica é um equívoco mortal, nunca se chegará a lugar nenhum.
RI: Como caminha a economia brasileira? O senhor avalia que o País já está em recessão?
Delfim Netto: Por definição, a recessão ocorre se o País apresentar dois trimestres consecutivos de desempenho negativo do PIB. O grande problema do PIB é que ele é recalculado três vezes pelo menos, de forma que o que está negativo pode virar positivo, pode mudar com as correções. Mas há um sentimento de que a economia está estagnada. O crescimento murchou, está muito próximo de zero e com uma inflação desconfortável. Não acredito que se perderá o controle, mas seguramente é uma inflação com a ideia de que o limite de tolerância superior virou a meta e há um déficit em contas correntes muito importante. Isso é um sintoma de que o País está estagnado e com problemas complicados, mas não está à beira do apocalipse. A política monetária está produzindo seus efeitos. É de se estranhar que as pessoas não percebam que o fim da política realmente é reduzir a tensão no mercado de trabalho. O que nós vivemos hoje é uma consequência da política que tivemos até recentemente em que se estimulou aumentos dos salários reais acima da produtividade. Não tem segredo, não é preciso ser físico quântico para saber que quando se faz isso, migra-se para um déficit das contas correntes e inflação, o que está ocorrendo.
RI: Então o modelo de política econômica precisa ser alterado em alguns aspectos?
Delfim Netto: Sim. Aquele mecanismo que foi muito bem sucedido na superação da crise e que foi muito ajudado no passado por situação externa favorável com melhoria das relações de troca, não funciona mais, ficou para trás. O Lula pegou um vento de cauda. Em 2003, uma tonelada de exportação comprava uma tonelada de importação. Já em 2010, com uma tonelada de exportação comprava 1,4 tonelada de importação, ou seja, ganhava-se de presente renda externa e ainda se fazia déficit em conta corrente. De forma que se tinha uma porção de recursos - de presente ou emprestados, que foram aproveitados para distribuição de renda. Ocorreram melhorias e é uma tolice tentar esconder. Hoje, as pessoas moram um pouco melhor do que moravam, as suas casas têm mais conforto e contam com eletrodomésticos. No fundo, como objetivo da economia, o consumo. Este mecanismo em que nos encontramos, que distribuiu renda, melhorou o crédito, foi fundamental, porque foram aproveitados recursos disponíveis durante alguns anos. Mas daqui para frente, a força de trabalho não vai crescer mais de 1% ao ano, a população brasileira está envelhecendo muito depressa. Portanto, não vai ter crescimento da oferta da mão de obra. Então, não haverá melhoria na economia sem o aumento da produtividade de cada cidadão. Um sujeito com uma enxada cultiva meio hectare, já um sujeito que opera um trator, cinco hectares. Ou seja, é a quantidade de capital que se coloca a serviço de cada sujeito que vai aumentar a produtividade. Mas como o capital vai mudando e se sofisticando, o trabalhador precisa ser mais capacitado. Isso é um processo.
RI: No entanto, o setor industrial apresenta baixo desempenho. O presidente da CNI, Robson Andrade, disse que a indústria crescerá menos de 1% este ano, um dos piores momentos do setor. Por que isso acontece?
Delfim Netto: Infelizmente, se destruiu o setor industrial devido à uma política equivocada de supervalorização do real para controlar a inflação. Então se sacrificou no altar antiinflacionário um setor inteiro. Isso não era necessário porque a inflação não se cura com conversa, mas somente com política monetária. A inflação precisa de uma combinação adequada de política fiscal porque o excesso de demanda vem do governo.
RI: O que pode ser feito para ampliar os investimentos privados?
Delfim Netto: Chegamos a um ponto que não se trata de um problema econômico, mas sim, ecológico. Aconteceu uma falha de comunicação entre o governo e a sociedade e produziu-se uma ecologia, um ambiente que não é favorável aos empresários, à produção e ao crescimento. A primeira coisa a ser feita é mudar essa expectativa. Há desânimo, as pessoas acreditam que o Brasil é irrecuperável, o que é falso. O Brasil vai voltar a crescer, não à taxas que já crescemos antes porque isso depende muito da acumulação de capital, o que leva tempo. Desde 2012, a presidente Dilma vem tentando ampliar a quantidade de capital, principalmente, com as concessões de infraestrutura. É que demorou muito o aprendizado. Ocorreram intervenções, todas elas bem intencionadas, mas não funcionaram como gostaríamos. A intervenção na energia era necessária mas foi feita de uma forma arbitrária e foi punida por São Pedro, com a crise hídrica. Isso desintegrou as finanças do setor elétrico. No caso dos portos, aquela intervenção era necessária, mas foi feita com tal arbitrariedade que só recentemente quando se abandonou àquela primeira versão, que as coisas começam a funcionar. Acho que só no segundo semestre do ano passado é que o governo acertou nas concessões. Isso demorou muito e produziu desânimo, mas o governo aprendeu.
RI: Esses ruídos geraram desconforto relacionado ao ambiente de negócios...
Delfim Netto: O que aconteceu é que se estabeleceu desde o inicio dúvidas ideológicas dos dois lados. O setor privado viu na Dilma, em minha opinião, equivocadamente, uma trotskista que queria o lucro zero. Isso tudo por conta dos erros nas concessões de serviços públicos. No início, o governo queria estradas de altíssima qualidade como as alemãs com a taxa de retorno de apenas 5,5%. Isso não era possível. O governo demorou para entender que é possível fixar um dos dois. Se fixar uma “autobahn”, isto é, uma estrada alemã, o mercado no leilão vai fixar a taxa de retorno necessária. Se for fixada taxa de retorno de 5,5%, o mercado vai dizer que por essa taxa só é possível entregar uma porcaria. Mas o governo aprendeu. Tanto é verdade que os leilões têm terminado muito bem. O problema, no entanto, é que isso não está resolvido ainda porque não há poupança para financiar tudo isso. O BNDES não é capaz de financiar todas essas obras. O dinheiro do banco vem de negociações de títulos do Tesouro. E, quando o Tesouro paga para o investidor 11% e empresta a 5% (BNDES), o aumento do investimento é menor do que parece e o custo é gigantesco. No entanto, é inegável que foi melhorando a administração. O que acontece é que quando veio o aprendizado, a ecologia estava infeccionada, o setor privado não se sentia capaz de viver naquele ambiente. O entendimento recíproco veio tarde demais.
RI: O senhor acha que para o Brasil superar essa fase de baixo crescimento da economia, a teoria Keynesiana é um caminho?
Delfim Netto: O Keynes é uma vitima dos seus asseclas como o Marx, que é sempre perseguido por seus asseclas. Aqui não tem nada de keynesiano ou neo-keynesiano. Trata-se de uma coisa absolutamente elementar. O Brasil precisa aumentar a qualidade e volume de investimentos entregue a um trabalhador cada vez mais preparado.
RI: O governo abandonou o chamado tripé macroeconômico e adotou a nova matriz, que segundo alguns analistas, não serve para os dias de hoje. Qual é a sua opinião?
Delfim Netto: Isso é um conversa para boi dormir, não tem matriz. O que existe é o normal, o que qualquer sociedade normal procura fazer. As políticas monetária, fiscal, salarial e cambial devem ser compatíveis com o equilíbrio interno, uma inflação parecida com a de seus concorrentes e o equilíbrio externo, ou seja, déficits muito moderados ou financiáveis em contas correntes. Não há formulas novas. Não tem nada de novo.
RI: O que precisa ser feito pelo futuro governo?
Delfim Netto: Hoje, a definição correta para o Brasil é uma situação desconfortável em diversos aspectos: fiscal, inflação, câmbio e no déficit em contas correntes e será necessário corrigir a política monetária. O País melhorou dramaticamente. Mas agora são essenciais reformas muito mais profundas. Por exemplo: tributária e previdenciária. É preciso resolver os exageros que existem no seguro desemprego e pensões. O Brasil precisa de uma coisa fundamental que é o orçamento base zero. O novo presidente seja ele quem for precisa chamar o Ministro do Planejamento, abrir o orçamento inteiro e analisar cada item. O orçamento é uma peça geológica e conta com projetos que Dom Pedro I e Dom Pedro II deixaram (risos), assim como todos os outros governos na história. A redução de ministério é importante, mas não passando os funcionários do ministério A para o B. Uma nova organização do orçamento é importante. Por que o Brasil cresceu ao longo de 32 anos no passado a 7,5% ao ano? O País tinha uma disponibilidade infinita de mão de obra, carga tributária de 24% do PIB e o governo investia 5% do PIB. Hoje, não tem mais disponibilidade de mão de obra, uma carga tributária de 36% do PIB e, um buraco, um déficit de 3,7% do PIB. Para complicar, o investimento do governo não chega a 2%. O governo tem que fazer a sua parte pois hoje consome a poupança do setor privado. O governo tem que voltar a adicionar poupança.
RI: Neste contexto, não é importante fortalecer o mercado de capitais?
Delfim Netto: Isso é evidente e é a milésima vez que vamos tentar. Nenhum país é capaz de voltar a crescer com poupança de apenas 18% do PIB. Se a economia brasileira, crescendo menos de 1% ao ano, tem um déficit em contas correntes de 3,7% do PIB, caso a economia avançasse 3%, esse buraco ia para 9%. Os investimentos e as exportações são os dois vetores que levam ao crescimento econômico equilibrado. O Brasil perdeu esses dois vetores e precisa recuperar. O mercado de capitais é fundamental porque não é possível continuar com o BNDES funcionando como o principal instrumento. O BNDES tem papel importantíssimo, decisivo no desenvolvimento econômico mas não pode viver com verba do Tesouro produzida por dívida. Dívida não é recurso. Enfatizo que recurso é poupança do governo.