Nas edições nos 183 a 185 da Revista RI, focalizamos o alinhamento entre proprietários de uma empresa, com especial ênfase naquelas com ações em bolsa de valores, e discorremos, em boa medida, sobre: aspectos que favorecem o desalinhamento (ed. 183), exemplos de desalinhamentos (ed. 184) e formas de criar ou aumentar o alinhamento entre esses agentes econômicos (185). No presente artigo, iniciamos uma nova sequência de três, por meio da qual abordaremos a fundamental questão do alinhamento entre proprietários e administradores.
Para tanto, retomemos o diagrama master que tem embasado a construção da orquestra societária, destacando no mesmo, os proprietários e os administradores empresariais e aproveitando a oportunidade para lembrar a quem nos honra com sua atenção e leitura de que o alinhamento amplo de todos os elementos apresentados no citado diagrama é imprescindível para que a organização consiga se deslocar com êxito do presente ao futuro.
O conflito proprietários-administradores, por um lado, é inerente à evolução de empresas, à sua dita profissionalização; exemplificamos esse ponto por meio das empresas familiares que, com o passar do tempo e o crescimento, passam a contratar administradores não egressos da(s) família(s) fundadora(s), a fim de ajudar na condução dos negócios e nas decisões. Por outro lado, o conflito em questão é tão relevante que dele, simplesmente, emergiu o movimento pela governança corporativa. Isso é tão importante que merece, aqui, uma breve digressão.
Rolf H. Carlsson, em seu livro Ownership and value creation: strategic corporate governance in the new economy (2001, p. 22), observa que durante a última década do milênio anterior, ou seja, nos anos noventa, a expressão corporate governance tornou-se de uso comum, não apenas nas comunidades de negócios e financeiras, mas também junto ao grande público. O caso Texaco, constituiu-se, segundo Carlsson, em um dos mais importantes vetores de impulsão de um movimento pela governança corporativa e, no presente artigo, o compararíamos a um gatilho.
Em 1984, a diretoria e o conselho de administração dessa Companhia utilizaram uma prerrogativa legal norte-americana, o American Companies Act, para recomprar ações da mesma por preço substancialmente acima daquele de mercado, de modo a evitar a aquisição dessas ações por parte de um acionista minoritário denominado Bass Brothers, visto como uma ameaça à posição corporativa de conselheiros e diretores. A compra do pacote de ações em questão teria custado aos acionistas da Texaco singelos US$ 137 milhões, correspondentes ao ágio pago aos minoritários da Bass Brothers. Esse tipo de operação é tratada no mercado norte-americano como greenmail, significando algo como chantagem financeira.
A operação supracitada provocou protestos veementes, inclusive na esfera política, deflagrando o início de um movimento pelo California Public Employes Retirement System - CalPERS -, um dos grandes fundos de pensão dos EUA, cujo conselho de administração se posicionou: como um investidor de longo prazo, o CalPERS não admitiria algo semelhante em nenhuma outra empresa do seu portfólio de investimentos, esperando ainda que tais empresas adotassem práticas que resguardassem os direitos dos acionistas (práticas de governança).
O CalPERS iniciou, a partir de então, uma atuação agressiva, participando de reuniões de conselhos de administração para defender seus pontos de vista e usando sua força política para lutar pelo aprimoramento de diversas questões relacionadas com o mercado de capitais norte-americano e às corporações: além do greenmail, tópicos como relacionamentos entre conselhos e diretorias, proventos dessas instâncias e as chamadas poison pills, ou seja, arranjos para garantir regalias aos seus integrantes.
O CalPERS não teria modificado, sozinho, a governança corporativa de diversas corporações dos EUA, mas foi fundamental às mudanças, destacando-se a sua habilidade em interagir e cooperar com outros agentes, como o State of Wiscousin Investment Board - SWIB - e o College Retirement Fund - CREF, um fundo de pensão de professores, que também colaboraram com a criação do Council of Institutional Investors - CII - em 1985, um dos marcos iniciais da governança corporativa nos EUA e no mundo.
O caso Texaco é, portanto, um bom e histórico exemplo do conflito entre proprietários e administradores e que resultou, conforme visto, em um levante de vários investidores institucionais no mercado de capitais norte-americano, criando um movimento pela governança corporativa que alcançou vários países, incluindo o Brasil, no início dos anos noventa.
Ponto de grande atenção: em 1992, na Inglaterra, foi publicado o Relatório Cadbury, considerado o primeiro código de boas práticas de governança, inspirado nas melhores práticas do mercado de capitais norte-americano e resultado do trabalho conjunto da Bolsa de Valores de Londres, da entidade dos contadores daquele País e do Conselho de Relatórios Financeiros.
Após essa breve digressão, retornemos ao citado conflito, para discutir, mais a fundo, sua natureza; este se trata, fundamentalmente, de um conflito de agência. O que significa isso?
Voltemos no tempo, novamente. O potencial de contenda entre proprietários e administradores foi identificado, nos anos trinta, por Adolf Berle e Gardiner Means, em uma das mais importantes obras sobre governança, denominada The modern corporation and private property (1932), focada no contexto norte-americano. Em momento pouco posterior à famosa derrocada do mercado acionário dos EUA (1929), esses dois autores apontaram o formidável poder dos administradores em muitas companhias, caracterizadas pela dispersão do capital e por muitos pequenos proprietários dependentes de boas decisões dos primeiros.
Anos mais tarde, em 1976, Michael C. Jensen e William H. Meckling publicaram o artigo Theory of the firm: managerial behavior, agency costs and ownership structure (Journal of Financial Economics), com uma fundamentação robusta, desenvolvendo a relação de agência entre proprietários e administradores, bem como identificando custos de agência nessa relação, que corroem o valor das firmas, em detrimento dos seus acionistas, especialmente, dos acionistas minoritários e este é, também, em um dos trabalhos de maior peso da literatura sobre governança.
No artigo acima mencionado, Jensen e Meckling definiram a relação de agência como sendo um contrato sob o qual uma ou mais pessoas - os mandatários - conferem a outra pessoa - o agente - a prerrogativa de prestar algum serviço para as mesmas, envolvendo a delegação de autoridade para a tomada de decisões pelo agente. Para os autores, nem sempre o agente atuará em prol dos melhores interesses dos mandatários. Para esses autores, o relacionamento entre proprietários e administradores de uma empresa se enquadra na definição de uma relação de agência pura, estando associada à separação entre propriedade e controle, a qual caracteriza modernas corporações.
E quanto aos custos de agência, também tratados pelos dois autores? Para Jensen e Meckling, e à luz do exposto anteriormente, esses custos incluirão os gastos associados às seguintes necessidades: 1) criação e estruturação de contratos entre mandatário(s) e agente; 2) monitoramento do agente pelo(s) mandatário(s); 3) obrigações do agente com relação ao(s) mandatário(s); 4) perdas residuais, ou seja, perdas de riqueza do(s) mandatário(s) decorrentes da divergência com o agente.
Os professores Jensen e Meckling avaliaram, ainda, como a propriedade impacta nos custos de agência, analisando o comportamento de um administrador hipotético que em um momento inicial, possui 100% da propriedade de uma empresa, vendendo, então, parte desse ativo para terceiros. Segundo os autores, o administrador-proprietário tentará manter seu poder pessoal de compra, após a venda, aumentando os gastos da firma com itens que satisfaçam às suas próprias necessidades, prejudicando os novos proprietários. Dessa forma, ao vender sua participação na firma, o proprietário-administrador criará custos de agência. Mais: quanto menores forem as participações dos compradores, mais isso encorajará o vendedor a expropriar esses novos proprietários, em benefício do seu poder de compra.
Ao mesmo tempo, os novos proprietários não serão cegos: prevendo o comportamento do administrador-proprietário após a venda, esses pagarão, pela sua participação, menos do que o ativo vale se estivesse em mãos exclusivas desse último. Em suma: a criação da figura do administrador-proprietário e dos não administradores-proprietários implicará na depreciação do valor da empresa
Feitas essas considerações, e qualificados a relação, o conflito e os custos de agência, observando que esses conceitos embasam um modelo financeiro de governança corporativa (a ser contemplado em artigo futuro), enfatiza-se que boa parte da literatura sobre governança corporativa é focada nesse modelo e se ocupa da proteção dos proprietários ausentes da administração empresarial. Como protegê-los, de maneira genérica? E como protegê-los em mercados de capitais conforme o nacional, cuja propriedade é altamente concentrada em mão de poucos agentes, de poucos acionistas? Em suma, como alinhar acionistas controladores (majoritários) e não controladores (minoritários), quando os primeiros também atuam como administradores?
Adiantamos que embora parte dessa resposta esteja no ambiente externo à organização, por meio de regras do jogo, formais e informais, parte, seguramente, residirá na própria organização, em sua arquitetura organizacional, representada simplificadamente, na figura abaixo, para uma sociedade por ações, com distinção entre governança e gestão da organização: