Lei Anticorrupção: empresas já contam com novas práticas
A nova legislação Anticorrupção (lei no.12.846/2013) tem levado as companhias a aperfeiçoarem suas práticas de Governança Corporativa. Já são evidenciadas diversas iniciativas inovadoras em suas rotinas. A constatação é de Sandra Guerra, presidente do Conselho de Administração do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC).
Nesta entrevista exclusiva à Revista RI, a presidente do IBGC afirma que o setor público precisa avançar em governança para ganhar eficiência e tornar o País mais competitivo. Outro tema abordado é a necessidade de revisão do Novo Mercado, segmento de listagem da BM&F Bovespa.
Sandra Guerra também comenta as evoluções na teoria sobre criação de valor através das boas práticas de governança e outros temas abordados no 15o. Congresso Anual do IBGC. O foco na geração de valor aos acionistas recebe ponderações dos especialistas. Acompanhe a seguir, a entrevista:
RI: Nos últimos anos, quais foram as principais evoluções na teoria sobre criação de valor através de boas práticas de Governança Corporativa?
Sandra Guerra: Existe um conjunto grande de inovações e novos pensamentos que começam a ser explorados nas teorias de governança. Durante muitas décadas, as teorias econômicas, em particular, indicavam que haveria uma primazia da criação de valor ao acionista. Esse posicionamento foi sustentado em um conjunto de pensamentos que à primeira vista faziam sentido, caso contrário não teria sido, ao longo de tantos anos, predominante. Nessa ideologia, no conceito de longo prazo, as práticas são ferramentas para aumentar o valor da empresa e, com isso, aumentar a riqueza dos acionistas. Os contratos estariam protegendo todas as partes envolvidas com os acionistas; o retorno para esses acionistas seria feito depois que todas as partes interessadas também fossem remuneradas e a companhia iria arcar com todos os passivos, isto é, as externalidades no futuro. Por muitos anos esse modelo foi visto como inquestionável pelo fato dele se assentar em um racional bastante convincente. O que começa a ser discutido há algum tempo e hoje tem muito mais clareza é que esse foco de criação de valor apenas para o acionista embute uma série de problemas que na verdade acabam até por canibalizar esse mesmo valor.
RI: Desta forma, o que se discute em relação ao foco na maximização do valor do acionista? Esse modelo pode ser questionável em quais aspectos?
Sandra Guerra: Em primeiro lugar, as novas teorias que questionam isso dizem que não existe um acionista, mas sim, diversos acionistas com interesses muito distintos. Desde acionistas de longo, ou longuíssimo, prazo até o acionista com interesse no curto, ou curtíssimo, prazo. Esse modelo que foi criado pode levar os acionistas, e mesmo os executivos, até de uma forma estruturada e incentivada, a se ocuparem menos com o longo prazo e focalizarem no curto ou no médio prazo porque existem incentivos para que possam agir assim. Um deles está relacionado aos modelos de remuneração que vêm sendo discutidos há muito tempo. Um executivo pode ser incentivado à uma janela de criação de valor de curto prazo de 2, 3 ou 5 anos, mesmo que essa geração de valor possa implicar numa destruição de valor ou riscos no futuro. Por exemplo, quando ele corta determinados investimentos em treinamentos ou em pesquisa e desenvolvimento (P&D). Esses são itens que vão refletir lá na frente. Então quando ele diminui esse investimento, melhora o resultado naquele dado momento, mas faz isso implicando que a companhia será menos competitiva no futuro. O foco excessivo no aumento do preço das ações em determinado momento da história ou a cada trimestre pode trazer consequências desse tipo. Além disso, esse modelo está ligado à criação de valor percebida apenas pelos resultados financeiros, no entanto, essa é apenas uma parte visível.
RI: O que os novos modelos apontam para mitigar essas distorções?
Sandra Guerra: Os modelos emergentes de pensamento teórico sobre a governança corporativa destacam que a empresa tem a licença da sociedade para operar. Quando se observa apenas os resultados financeiros, não são capturados diversos outros elementos. Uma inovação é o Relato Integrado, lançando no final de 2013, que é um conjunto de diretrizes de como as empresas devem comunicar seus resultados. Embora esteja focado na divulgação de resultados, esse relato contribui para que as empresas pensem de forma diferente. Esse conceito considera não só o capital financeiro e o capital manufaturado, que são os mais visíveis nas organizações, mas também, o capital intelectual, o capital social e o capital natural. Quando eu falo de capital social e de relacionamento, imagine uma empresa que quer obter bons resultados no curto prazo, a criação contínua de resultados melhores e maiores, ela pode ser incentivada a não respeitar o equilíbrio das partes envolvidas com a empresa. É o caso das companhias que criam pressão exagerada sobre seus fornecedores, espremem toda a possibilidade de geração de valor que eles têm, fazendo com que pratiquem preços além dos justos e alonguem muito os prazos. As empresas que adotam essa postura podem até conseguir serviços a menores preços e melhores condições no curto prazo, mas será que vão conseguir manter isso ao longo de 10, 15 e 20 anos? Será que os fornecedores vestem a camisa dessas companhias ou fazem isso com um sentimento negativo? Por outro lado, as empresas que embora tenham ganhado menos no curto prazo - ao manterem um relacionamento saudável com fornecedores, que estarão com elas nos bons e maus momentos – estarão mais seguras. Esses são elementos que começam a ganhar mais luz no cenário teórico que estuda a governança corporativa e, por isso, o IBGC preparou a conferência de outubro com a participação de grandes especialistas.
RI: De que forma a Lei Anticorrupção (lei no.12.846/2013) contribui para melhoria da governança das empresas?
Sandra Guerra: Eu tenho testemunhado diretamente como a lei tem motivado as empresas a agirem. Em primeiro lugar, as empresas estão revisando seus códigos de conduta, verificando se estão adequados. Na maioria das vezes, os códigos, de uma forma indireta, já cobriam esses elementos, porém, não eram tão claros, isto é, esse conteúdo não estava expresso com todas as letras e destaque merecido. Há ainda um movimento de fortalecimento dos mecanismos para assegurar que os códigos serão efetivamente levados à sério. As empresas têm adotado canais terceirizados de denúncias com o propósito de tornar o processo mais eficiente seja porque internamente não contam com todos os recursos necessários para isso mas, principalmente, porque darão conforto para as pessoas fazerem as denúncias, uma garantia maior de que o sigilo será preservado. De forma geral, há aumento da adesão das companhias para a denúncia anônima, elas abrem canais que antes não tinham. As empresas também começaram a rever os processos. Algumas que tinham comitê de conduta ou ética somente no âmbito de gestão, mantém essa estratégia, mas passam a considerar agora que esse comitê deve ter acesso ao Conselho de Administração que, por sua vez, deve fazer supervisão à distância. É fundamental que o Conselho acompanhe o número de denúncias, os motivos e o tratamento dado aos problemas. E, tenho visto ainda um esforço educacional. As empresas fazem seminários e workshops. Algumas delas estão utilizando atividades lúdicas como peças de teatro para atingir todas as camadas, não só a gerencial. Outras criaram também uma espécie de sistema de fidelidade no qual os funcionários recebem perguntas por telefone a respeito do código de conduta. Isso serve para aferir se eles estão entendendo as regras. Conforme o número de acertos, os funcionários recebem pontos que podem ser trocados por prêmios. Há companhias que fornecem jogos aos funcionários para que eles levem o conhecimento à família sobre os malefícios da corrupção e como deve ser combatida. Todos esses esforços são positivos e ajudam a manter os códigos de conduta vivos dentro das organizações.
RI: Diversos estudos demonstram que o País tem perdido competitividade pelos muitos casos de corrupção. Há um clamor da sociedade pela melhoria dos serviços públicos, uma vez que a carga tributária é alta. O setor público precisa avançar em governança?
Sandra Guerra: Ao longo da história, não só do nosso País como ao redor do mundo, existe um questionamento sobre a eficiência do Estado no desempenho do seu papel e ao mesmo tempo, sobre fatores ainda mais perniciosos como a corrupção. Há a percepção de aumento da corrupção. Tanto é verdade porque surgiram diversas leis para combater esse problema nos últimos anos. A Lei Anticorrupção no Brasil é tardia. O Brasil estava entre os três últimos países signatários de uma convenção da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a implementar a lei. Nesse contexto vemos que é crescente a demanda da sociedade por uma melhoria na governança do primeiro setor. O IBGC fará 20 anos em 2015 e trabalhamos fortemente na melhoria da governança do segundo setor, mas temos sentido mais o clamor para que haja avanço na governança pública, do primeiro setor. Certamente, ocorreram avanços do ponto de vista regulatório como a Lei Anticorrupção, a Lei de Acesso à Informação e a Lei de Responsabilidade Fiscal. São exemplos de movimentos regulatórios alinhados aos princípios que prezamos tanto no âmbito da governança que são prestação de contas e transparência.
RI: Há outras iniciativas para melhoria da governança pública em curso no Brasil?
Sandra Guerra: Aqui no Brasil temos observado outro fator positivo que é a atuação do Tribunal de Contas da União (TCU) em diversas frentes com esse propósito de melhorar ou aumentar a discussão da governança pública no País. Inclusive, o tribunal tem mantido contato com o IBGC. O TCU publicou a segunda versão de um documento “Referencial Básico de Governança”, que avança em desenhos de diretrizes de governança ao primeiro setor. O tribunal fez parceria com a OCDE para participar de um benchmarking, uma troca de experiência sobre práticas considerando países como Estados Unidos, Holanda, Coréia do Sul, Polônia, França, Chile, entre outras. O Brasil levará suas informações e irá se comparar com outros paises, irá aprender. Nos últimos 20 anos, tivemos grandes avanços no setor privado sobre a consciência dos princípios básicos de governança - equidade, transparência, prestação de contas e mesmo a responsabilidade social e ambiental. Já no setor público isso não ocorreu e as dificuldades são de natureza mais complexa. O impacto na sociedade é grande. Temos vivenciado o crescimento da importância do setor público na economia não só no Brasil como em diversos paises. Portanto, é relevante a eficiência e a certeza de que a atuação se dá preservados todos os princípios que estão na raíz da boa governança. A percepção internacional em relação ao País tem sofrido decréscimo - duas agências de rating baixaram a classificação do País - isso tem impacto negativo na atração de recursos e na competitividade das empresas ao redor do mundo. É preciso melhorar a percepção. Há características muito diferentes na governança pública que devem ser consideradas mas os princípios são os mesmos e os benefícios podem ser comparados aos da boa governança do setor privado
RI: Em junho, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, anunciou medidas de estímulo ao mercado ao capitais, entre elas, a desoneração dos lucros de imposto de renda sobre ganhos de capital para ações de empresas de médio porte. Um dos grandes desafios para as empresas entrantes na bolsa é a melhoria na governança corporativa. Nos últimos anos, houve avanço nesse sentido? Como intensificar iniciativas educativas sobre governança para acesso ao capital?
Sandra Guerra: Incentivos para as empresas menores terem acesso a capital com custos mais reduzidos eram mais do que desejados e as medidas são bem vindas, embora tardiamente. Essas empresas, para entrarem nesse universo, têm que avançar em práticas de governança corporativa. Na verdade mesmo empresas que pretendem continuar fora do mercado de capitais precisam fazer isso. Além da redução do custo de capital, benefício mais evidente, a governança cria uma cadeia de geração de valor. O ambiente simétrico de informações auxilia no processo de tomada de decisões, na retenção de funcionários e fornecedores e nos cuidados com a reputação. Não falamos que o modelo de governança de uma grande empresa listada é recomendado para PMEs que ainda estão estruturando as suas práticas de gestão. Nas PMEs, muitas melhorias são decorrentes apenas do tempo de sentar para discutir e definir processos. Os custos não são necessariamente muito grandes. Se vão ter Conselho de Administração, terão que remunerá-lo, isso é um custo, é fato, agora, não terão a quantidade e as condições das grandes empresas listadas. Mas, por outro lado, o fato de terem um Conselho é elemento gerador de valor porque a companhia tomará as melhores decisões e maiores condições de implementá-las. Ao longo do tempo, esse aumento de custo resultará em criação de valor. Caso isso não aconteça, as práticas devem ser revisadas porque o resultado deve ser sempre a geração de valor. O IBGC tem feito trabalho forte e notado maior procura aos seus programas de desenvolvimento e treinamento, inclusive de administradores, acionistas ou herdeiros de empresas menores. É visível a presença de PMEs. Vemos a possibilidade de maior cooperação entre entidades, empresas e terceiro setor para atividades educativas sobre governança. Isso será cada vez mais importante.
RI: Há alguns analistas que dizem que o Novo Mercado precisa passar por revisão. Isso é necessário?
Sandra Guerra: As práticas de governança de uma empresa, de um País, em qualquer instância, têm que ser consideradas como medidas em contínua progressão. Não existe modelo final e permanente porque o contexto onde está inserida uma empresa, um conjunto de companhias de um segmento de listagem como o Novo Mercado e, até mesmo, o País, muda continuamente. O Novo Mercado teve sucesso enorme internacionalmente porque trazia elementos superiores aos que a lei previa e também acima das práticas usadas nas empresas brasileiras. Ao fazer isso, juntou um grupo de empresas que tinha valor maior por atender voluntariamente, por um contrato e não por força legal, a um conjunto superior de práticas. Isso foi bem testado no momento de forte liquidez mundial e tivemos ofertas feitas no Novo Mercado particularmente depois de 2004. Com o Novo Mercado, melhoramos a capacidade de atração de investimentos. Tínhamos um diferencial. Hoje, esse conjunto de práticas não é tão superior e o valor percebido também não será tão superior. Se não fizermos continuamente um processo de oxigenação dessas práticas, haverá perda maior desse diferencial. Tivemos uma reforma terminada em 2010, que foi percebida internamente e por comunidades internacionais como tímida em seu conjunto, mas claro, com alguns avanços relevantes. No geral, foi tímida porque outros mercados fizeram benchmarking no Brasil e foram aperfeiçoando seus modelos.
RI: O que precisa ser modificado no Novo Mercado?
Sandra Guerra: Há muita coisa para ser revista. O modelo de conformidade, de checar tarefas, não necessariamente tem assegurado a boa governança na prática. No segmento do Novo Mercado há indicadores de práticas que são objetivos. A Bolsa não pode adotar critérios que não podem ser observados na prática como a proporção de conselheiros independentes; separação entre CEO e presidente do Conselho de Administração e percentual mínimo de free float, por exemplo. Mas embora tendo isso, observamos casos complicados no País, muitos ainda sendo julgados, que demonstram que nem sempre a eficiência de indicadores assegura, de fato, a boa governança. É a diferença entre “parecer ser” e “ser”. Voltando um pouco para o passado, por exemplo, nos Estados Unidos, na Enron as diligências constataram que todos os critérios estavam lá. Hoje, se discute que é preciso deixar de privilegiar tanto os conceitos de conformidade e começar a incentivar a responsabilidade dos agentes de construírem suas práticas e responderem por elas em qualquer situação. É o modelo Comply or Explain, “Aplique ou Explique”, que garante maior liberdade às empresas para ajustarem suas práticas à criação de valor. A responsabilidade deve ficar com as companhias de maneira muito prescritiva. Hoje, a regulação e a autorregulação tratam as empresas de forma muito infantilizada. O que se discute portanto são formas de incentivar a maturidade das empresas, que não devem apenas fazer porque tem regulação e autorregulação, mas elas podem se posicionar de maneiras específicas e explicarem como vão mitigar determinados riscos. Por exemplo, ao redor do mundo há recomendação de que a maioria dos conselheiros seja independente. Mas uma empresa poderia se posicionar que, em determinado momento, não vai atender a esse quesito porque o setor de atividade está passando por uma turbulência e o conhecimento interno e setorial passa a ser relevante, o que não seria possível com tal número de independentes. No entanto, essa companhia teria que explicar como iria mitigar isso, por exemplo, com um conselheiro independente líder que trataria os possíveis conflitos de interesse como se presidente do Conselho fosse. Desta forma, a empresa se coloca e explica como mitiga. O julgamento virá dos agentes do mercado. Assim, a companhia é dona das decisões e responde por elas. Isso exigirá um processo de aprendizado dos agentes de mercado. No entanto, é um caminho virtuoso no qual se observa e vigia as convicções criadas dentro das organizações. Os resultados são mais sustentáveis do que na cultura exclusiva de cumprimento às regras.