Churchill dizia que “em uma guerra, a primeira vítima é a verdade”. Parafraseando, podemos afirmar que, em uma situação de recuperação judicial, a primeira vítima é a reputação do empresário. Deixando de lado os casos flagrantes de grande incompetência ou aquelas ocorrências de evidente má fé, aí inclusas a intenção de manipular dados e fatos com o uso intensivo das técnicas de comunicação e construção de imagem, não importam as causas.
Se foram investimentos excessivos com créditos de terceiros, crença em cenários de consumo, financeiros e cambiais convidativos, com frequência apregoados por autoridades, confiança em novos produtos, mercados e canais, o que, frise-se, em uma primeira fase sempre resultou na criação de postos de trabalho e pagamento de tributos adicionais, ou pouca atenção a novas ameaças competitivas, inclusive, conforme afetando diversos segmentos industriais brasileiros, oriundas de países asiáticos, o fato é que, ao requerer a recuperação judicial, de imediato a empresa vê-se com seu valor amplamente reduzido e, o que é pior, o empresário tende a se defrontar com sérios questionamentos e um quase total esquecimento de suas realizações e conduta prévia.
Cumpre, primeiramente, reconhecer que tal reação é absolutamente normal. Afinal de contas, trabalhadores, fornecedores, financiadores e até mesmo órgãos fiscais, tem razão ao exprimirem sua frustração. Depositaram confiança na gestão da empresa, o que compreendia saber aproveitar oportunidades de mercado, bem como prudência e capacidade de antever fatores adversos e de implementar as devidas ações de proteção. Deparam-se com os termos de um plano de recuperação judicial com prazos dilatados de recebimento, por vezes períodos de carência e, na quase totalidade das situações, propondo deságios.
A persistência de tal clima de confrontação, o empresário sentindo-se objeto de incompreensão e credores contemplando prejuízos, jamais será conducente à recuperação da empresa.
A Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, culminou um longo processo através do qual se buscou a muito necessária e demandada atualização da antiga lei de falências, substituindo a antiga Concordata por um instrumento que, privilegiando o respeito aos direitos das diversas classes de credores, assegurasse o alcance de seu objetivo maior, qual seja a recuperação da empresa e restauração de sua capacidade de gerar riqueza e postos de trabalho. Como assinalou o MM. Juiz Luiz Roberto Ayoub, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em prefácio ao livro “Lei de Falências e de Recuperação de Empresas”, de autoria do Dr. Cristiano Imhof (Conceito Editorial, 2009), “A empresa mostra-se digna de proteção do ordenamento jurídico, posto que a hodierna vida gregária necessita dos suportes materiais de bens e serviços que são viabilizados por ela. Decorre-se, então, que seu fomento e saúde são de interesse público primário. Sua preservação, portanto, é o norte principio lógico das normas que corporificam e sustentam a empresa”.
Entretanto, em momento algum é aceito, sequer cogitado, o repúdio ao pagamento dos compromissos contraídos, pois, como bem enfatizou o MM. Desembargador Carlos Henrique Abrão, do Tribunal de Justiça de São Paulo em seu livro “A Responsabilidade Empresarial no Processo Judicial” (Conceito Editorial, 2011) “O fundamento obrigacional do pagamento não pode ser preterido por outros critérios, porem, se ajusta à realidade da empresa, interesse público e de eventual concursos de credores”.
Fica evidente, portanto, que o objetivo propugnado pelo legislador vem a ser a recuperação da empresa e satisfação de credores, mas isto jamais se tornará atingível se, juntamente com a progressão dos atos jurídicos, não houver o trabalho dedicado de restauração de valor.
Não há empresa que subsista à destruição de seu valor assim como não há empresa que se reerga se não restaurar um ou mais de seus fatores de criação de valor.
Da parte do empresário este processo de restauração de valor se inicia com o reconhecimento de que a empresa que se soerguerá jamais será idêntica à anterior. Ou seja, não há lugar para saudosismo. Glórias e feitos passados podem ser dissecados para que seus fundamentos continuem a ser aplicados, entretanto, dificilmente serão replicados. A nova empresa que, certamente, será menor e menos expressiva, muito provavelmente será mais ágil e mais fácil e rapidamente incorporará novas tecnologias e penetrará em novos mercados. Hábil será também se apoiar a restauração de valor na identificação de nichos nos quais desfrute de maior reconhecimento por parte de consumidores e canais bem como respeito por parte de credores.
Isto não quer dizer que a nova empresa deva se divorciar de seus princípios, valores e fundamentos e os principais serão aqueles que relacionaram a empresa com seus funcionários e com seus consumidores.
Os trabalhadores serão aliados, inclusive, como tem ocorrido em situações recentes, contrariando atitudes de sindicatos, se guardarem a memória de uma esclarecida política de recursos humanos, compreendendo tratamento condigno e, muito especialmente, aprimoramento profissional. Já no tocante aos consumidores, a fórmula para consolidar tão valiosa aliança reside no histórico de manutenção da qualidade e das boas práticas nas relações de consumo, abrangendo, quando for o caso, o disciplinamento dos canais de distribuição,. Igualmente, o Brasil recente tem testemunhado casos de empresas que entraram em recuperação judicial, porém, que, no decorrer do período em que se acentuaram crescentes dificuldades financeiras e operacionais, jamais aceitaram ou recorreram à redução da qualidade de seus produtos. Quando tais produtos, após a empresa entrar em recuperação judicial, começaram a escassear na rede de distribuição, por força de vantagens por esta buscadas, observou-se vigorosa reação de consumidores questionando a falta e insistindo na demanda.
Se a confrontação deve ser evitada, até por um elementar raciocínio pragmático, pois, a perdurar, poderá levar a empresa à quebra ou, na melhor das hipóteses ao prolongamento do prazo de recuperação, a convergência de interesses de credores e empresários, sempre reiterando, estes de trajetória idônea e responsável, tem como foco a restauração de valor. Neste particular, um dos vários aprimoramentos que a Lei nº 11.101 carece está sendo gradativamente aceito e implementado, o entendimento da atuação dos ora denominados “credores parceiros” , que passam a contar com o reconhecimento por parte da empresa expresso em antecipação de prazos de reembolso e/ou menores deságios. O que tais credores estão fazendo é reconhecer a absoluta necessidade de restaurar valor, para o qual a empresa não pode prescindir de matérias primas e créditos financeiros.
Persiste a carência de outros aperfeiçoamentos a um texto legal indiscutivelmente de largo alcance socioeconômico, o mais importante, sem dúvida, relativo à questão fiscal. Muito embora, quando promulgada a Lei nº 11.101 tenha sido divulgado que os débitos fiscais seriam objeto de exame, até o presente o tema ainda não foi devidamente tratado, com óbvias e sérias repercussões sobre o processo de restauração de valor. Ora, sem entrar no mérito da discussão da carga fiscal, é fato que não há empresa que recorra à recuperação judicial sem que tenha débitos de impostos. Por outro lado, muitas destas empresas teriam condições de continuar a participar de licitações de compra por órgãos de governo, fornecendo produtos e serviços de qualidade e preços compatíveis com as respectivas exigências, não fora a impossibilidade de apresentar certidões negativas de débitos, o que inibe e resulta em danos à restauração de valor.
A consagração da Lei nº11.101 completar-se-á quando os diversos agentes envolvidos, empresa em recuperação judicial, credores - trabalhistas, fornecedores e financiadores - judiciário e fisco reconhecerem o vínculo entre o processo de recuperação judicial e os esforços pela restauração de valor.
Empresários idôneos, mas, que nas palavras de Gonçalves Dias, por “fado inconstante”, viram-se em recuperação judicial e credores respaldados por seus legítimos direitos encontrarão na bem sucedida restauração de valor a via de alcance de seus pleitos.
Ruy Flaks Schneider é engenheiro e M.Sc. em Engineering Economy pela Universidade de Stanford. Conselheiro de Administração certificado pelo IBCG, tem integrado diversos Conselhos de empresas em recuperação judicial. Conferencista da Escola de Guerra Naval e do Curso Superior de Defesa.
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