O acordo de leniência é pertinente, mas especialistas que participaram do Thomson Reuters Regulatory Summit 2014 discutem se de fato estarão asseguradas as garantias para estimular as delações. Vazamentos de informações atrapalham. As empresas se preparam para se adequar, mas as autoridades públicas precisam tomar cuidado com suas condutas.
Já em vigor no País, a Lei 12.846, chamada Lei Anticorrupção ou Lei da Empresa Limpa, responsabiliza administrativa e civilmente as empresas (pessoas jurídicas) por atos de corrupção contra agentes públicos nacionais e estrangeiros, como suborno, fraudes em licitações, entre outros ilícitos.
Porém, não se exclui a responsabilização dos indivíduos envolvidos. Na esfera administrativa, as multas previstas chegam até a 20% do faturamento bruto da companhia ou R$ 60 milhões e também é exigida a reparação integral do dano. Em termos judiciais, pode ser decretada a perda de bens, direitos e valores, suspensão ou interdição parcial das atividades, assim como, proibição de recebimento de incentivos, subsídios, subvenções ou empréstimos de órgãos governamentais ou instituições financeiras públicas, pelo prazo de 1 a 5 anos. A lei também conta com mecanismos para impedir que novas empresas criadas por sócios de empresas inidôneas - em seus próprios nomes ou ainda de forma oculta - venham contratar com a administração pública. Em caso de irregularidades, são solidariamente responsáveis as sociedades controladoras, controladas e coligadas.
A lei inovou ao oferecer aos infratores a possibilidade de firmarem acordos de leniência. Desta forma, as empresas que colaborarem efetivamente nas investigações podem ficar isentas de certas penas ou tê-las reduzidas. O objetivo é estimular a denúncia espontânea pelas pessoas jurídicas.
“A corrupção é um tipo de crime em que todos os envolvidos levam vantagens. Há uma posição bastante cômoda das partes que agem de forma errada. Assim, é preciso incentivo à delação. Ninguém é melhor do que as pessoas que estão no esquema para relatar e apresentar provas às autoridades”, afirma Gilson Libório, diretor de Assuntos Estratégicos da Controladoria Geral da União (CGU). A CGU encaminhou em maio à Casa Civil a proposta para a regulamentação federal da lei. “Essa regulamentação está em análise. Ainda não sabemos a data da publicação”, informa.
De acordo com Marcelo Calliari, sócio do escritório Tozzini Freire Advogados, será um grande desafio à CGU e aos órgãos estaduais e municipais conseguirem atrair lenientes, uma vez que a legislação não assegura nenhuma proteção criminal aos indivíduos que fazem as denúncias. Pela lei 12.846, o acordo de leniência é focado no abrandamento das punições administrativas e só para as empresas, não aos indivíduos. “Será fundamental chegar na esfera criminal e negociar a redução de pena também. Há um problema na lei, mas é possível estimular essa coordenação para que sejam firmados acordos dos dois lados, na área administrativa e, também, na criminal”, comenta Calliari. De acordo com o advogado, as pessoas que pretendem se entregar precisam ter previsibilidade do que acontecerá com elas, caso contrário, não tomam essa atitude. O acordo de leniência na esfera civil, previsto na Lei Anticorrupção, tem um paralelo mais antigo no Código Penal, que é a delação premiada. “Não vejo impedimento de uma empresa que fez o acordo de leniência, que os indivíduos envolvidos possam prestar colaboração premiada, segundo previsto na área Penal”, afirma Roberto Troncon, Superintendente da Polícia Federal no Estado de São Paulo. Ele também avalia que esse tipo de alinhamento será relevante.
“De forma geral, não vejo muitas vantagens no acordo de leniência. Os benefícios são pequenos. Há desproporcionalidade”, enfatiza Gilson Dipp, ministro do Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Além de regras claras, poderiam ser estudados mais estímulos. Não representando um exemplo totalmente adequado ao Brasil, Dipp destaca a atuação da Securities and Exchange Commission (SEC), a Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos, no combate às fraudes ao sistema financeiro. Segundo regras recentes, delatores chegam a receber comissões de 10% a 30% do que a SEC arrecada ao fechar acordos com as companhias que cometeram os atos de corrupção. É muito difícil que as empresas deixem que os casos cheguem à Justiça, porque os valores seriam muito maiores do que os estipulados em acordo. Mas antes mesmo que as denúncias cheguem à SEC, há um primeiro estágio a ser cumprido. Os delatores têm que informar aos seus gestores diretos nas empresas que descobriram a fraude e as companhias têm um prazo de 120 dias para reverter a situação. Se isso não acontecer a contento, a denúncia deve ser formalizada na SEC. Conforme Dipp, a Internal Revenue Service (IRS), o fisco americano, tem uma iniciativa bastante parecida.
O problema dos vazamentos
O acordo de leniência vigente na Lei Anticorrupção foi baseado na experiência já consolidada da Lei Antitruste, que estimula uma pessoa ou empresa envolvida em atos ilícitos de ordem econômica a revelá-lo. Da mesma forma, o acordo de leniência previsto na Lei 12.846 só é firmado caso a empresa for a primeira a denunciar. A companhia também deve interromper completamente a sua participação na infração e cooperar ativamente com as investigações.
Um dos itens mais importantes para que as delações ocorram é o sigilo em relação às contribuições prestadas. Em relação ao combate à formação de cartéis, há casos recentes no País nos quais o sigilo das informações dadas pelos denunciantes não foi respeitado. Um deles é o da Siemens, acusada de envolvimento em suposto esquema de cartel na licitação para a construção da linha 5 do Metrô. O conteúdo do acordo fechado com Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) vazou para imprensa. Por sua vez, as informações prestadas pela Bosh em um acordo com o Cade que apura suposto cartel no mercado de velas de ignição para veículos também vieram à tona. “Isso é muito ruim. Todas as autoridades envolvidas têm que ser capazes de assegurar proteção dos dados. Leniência é uma relação de confiança”, diz o advogado Marcelo Calliari. Esse tipo de problema desestimula novas denúncias, segundo o especialista.
No início de setembro, a Superintendência da Polícia Federal no Paraná abriu uma investigação para apurar possível vazamento do depoimento do ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa, sobre um suporto esquema de propina na Petrobras. O inquérito foi instaurado após a publicação de reportagens sobre a suspeita de participação de diversos políticos no caso. Em nota divulgada à imprensa, a PF disse que as informações são protegidas por segredo de Justiça e são relativas à Operação Lava Jato. Paulo Roberto Costa decidiu aderir ao acordo de delação premiada com os procuradores da força-tarefa depois que a PF fez buscas e apreensões nas empresas dos familiares dele, incluindo esposa, filha e genro. Segundo matérias publicadas na imprensa, o ex-diretor deu o nome de 12 senadores, 49 deputados federais e um governador - ligados ao PT, PMDB e PP- a quem ele teria repassado 3% do valor dos contratos da estatal.
“Qualquer vazamento desse tipo é sempre prejudicial”, ressalta Roberto Troncon, Superintendente da PF em São Paulo. Segundo ele, investigações são prejudicadas e outras delações, inibidas. Troncon explica que a Constituição Federal prevê a publicidade da administração pública, mas essa situação encontra limites no princípio de não considerar ninguém culpado antes da sentença irrecorrível na Justiça. De acordo com ele, a imprensa tem o direito de buscar informações, no entanto, os agentes públicos, de qualquer órgão ou nível, que possuem conhecimento de informações sigilosas e as divulgam, estão cometendo infração. Trata-se de crime de violação de sigilo funcional, previsto no código penal. “Por ser um crime de menor potencial ofensivo dificilmente as pessoas serão presas exclusivamente por conta disso. Mas se houver interceptações de ligações telefônicas e comunicações, daí configura crime mais grave”, explica. Entretanto, no processo disciplinar, os funcionários podem ser suspensos ou até demitidos.
Governança pública
Na visão de João Augusto Nardes, ministro presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), a falta de governança, planejamento e de um sistema eficiente de gestão de riscos nas esferas públicas – federal, estadual e municipal – facilita a corrupção. Segundo ele, houve deficiência no gerenciamento de riscos na Petrobras. “A governança pública é uma questão que temos que endereçar no curtíssimo prazo para aumentar a eficiência e evitar muitos problemas. Somente desta forma, a economia voltará a crescer”, afirma Nardes.
O TCU, conforme ele, está atuando como um indutor dessa mudança no País e lançou o “Referencial Básico de Governança”, que é aplicável aos diversos órgãos e entidades da administração pública. Recentemente, foi fechado um acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), para uma troca de experiências sobre práticas de governança com 12 países.
Em uma outra iniciativa, o Tribunal está finalizando uma grande auditoria em cinco áreas: Educação, Saúde, Segurança, Cultura e Meio Ambiente. Esse diagnóstico será entregue no dia 17 de novembro ao novo presidente da República. “Em um evento, serão apresentados os gargalos nacionais e regionais que precisarão ser resolvidos”, afirma Nardes.
Diversos aspectos atribuídos à ineficiência fazem parte, na verdade, do que se chama corrupção silenciosa, avalia Jorge Saba Arbache, professor da Universidade de Brasília (UnB) e ex-economista sênior do Banco Mundial. “A corrupção silenciosa é um conjunto de comportamentos, desvios de conduta, difíceis de quantificar, mas com efeitos negativos. Nem sempre a corrupção envolve transações monetárias”, explica. No Brasil, alguns exemplos são: o elevado absenteísmo de servidores nas escolas e hospitais públicos; greves abusivas; resistência à introdução de políticas meritocráticas porque há falta de esforço ou compromisso e, ainda, ações para influenciar regras do jogo em provento próprio ou de terceiros. Esse conjunto de situações é principal causa do hiato entre as intenções políticas e os resultados efetivos verificados pela sociedade. Para reverter essa situação, a governança pública é fundamental, avalia o professor. O Brasil é o 72o. colocado entre 177 países no índice de percepção da corrupção da Transparência Internacional.
Dentro das empresas
“Verificamos, desde o princípio, que as empresas apóiam a Lei Anticorrupção. São regras que visam uma competição justa no mercado”, acrescenta Caio Magri, gerente executivo de Políticas Públicas do Instituto Ethos. As organizações têm se preparado para assegurar o comportamento ético dos seus funcionários. Muitas delas, ampliaram os investimentos nas áreas de compliance, de acordo com o advogado Marcelo Calliari, sócio do escritório Tozzini Freire. Elas têm mapeado com mais cuidado suas relações com entes públicos, representantes comerciais, distribuidores, fornecedores e clientes. Dentre os colaboradores, verificam, por exemplo, quais participam de associações de classe ou de outras entidades. As companhias também realizam treinamentos com os funcionários e testam o conhecimento deles a respeito dos códigos de conduta, fazendo entrevistas repentinas ou aplicando jogos tipo Quiz. Outra medida é a abertura de canais de denúncia. “Para garantir o anonimato e não retaliação, as companhias têm contratado serviços externos para receber dos colaboradores diversos tipos de reclamações como as trabalhistas e para que eles também apontem possíveis problemas de corrupção”, destaca o advogado.
A ex-presidente da Comissão de Valores Mobiliário (CVM), Maria Helena Santana, atualmente membro dos conselhos de administração do Grupo Pão de Açúcar e da Totvs, alerta os principais pontos que resultam em infortúnios para as companhias. São fraquezas na gestão de riscos, que precisam ser resolvidas. A primeira está ligada à cultura das organizações, isto é, a governança de papel. “Não basta ter vontade de fazer certo. A intuição jamais poderá substituir controles e processos”, diz. Outro equívoco recorrente é não comunicar o planejamento e as metas, de forma clara, para todos. O terceiro erro consiste nas corporações não acreditarem nas competências específicas e, consequentemente, não valorizá-las. “Há empresas que não investem em estruturas de controle para mitigar riscos, nas competências necessárias. Isso pode ser caro, mas é fundamental, como se fosse a contratação de um seguro”, enfatiza. Se não houver investimento nesses quesitos de compliance, certamente, quando ocorrerem crises no futuro, o dispêndio será muito maior, reforça a especialista. Maria Helena destaca ainda que todas as informações devem chegar ao Conselho de Administração. “Vejo casos nos quais os comitês não se conversam e o Conselho também não faz a coordenação necessária”, diz.
Remessas ilegais do Brasil
Um estudo da organização internacional Integridade Financeira Global (GFI) mostra que, no Brasil, as remessas ilegais de divisas superaram as legais em 113% entre 1960 e 2012. Durante esse período analisado, saíram ilegalmente do País US$ 401,6 bilhões, ao passo que as remessas legais somaram US$ 118,6 bilhões. O relatório foi divulgado no início de setembro. Conforme o documento, a forma mais comum desse crime é a alteração de notas fiscais de bens transacionados internacionalmente. Quanto um produto é importado, a nota é superfaturada e, quando exportado, subfaturada.