Recentemente, mais precisamente em 23 de setembro último, um caso de insider trading foi julgado e nele o Colegiado da CVM deu um importante passo para preservar a segurança jurídica no mercado, bem tão caro a todos.
Não se nega que a ocorrência de insider trading abala a confiança dos investidores no mercado. Afinal, aquele que comete insider se utiliza indevidamente de informações privilegiadas, aproveitando-se, portanto, de informação que não está disponível a todos os investidores para dela obter lucro indevido. Por isso, não é surpreendente que o combate ao insider trading seja uma das prioridades atuais da CVM.
Contudo, nos últimos anos a maneira como a CVM passou a se posicionar em casos concretos deu origem a preocupações maiores, especialmente às instituições financeiras multisserviços, que tanto atuam no mercado acionário (como investidoras ou gestoras) como são assessoras em operações societárias e ofertas públicas de valores mobiliários.
De um lado, a coexistência dessas áreas é plenamente admitida nas normas da CVM, desde que haja efetiva segregação das diferentes funções, de modo a evitar conflitos de interesse e aproveitamento indevido de informações privilegiadas a que a instituição financeira tenha acesso em razão de sua função de assessora financeira (a área que investe em bolsa, por definição, toma suas decisões de investimento a partir da análise de informações públicas). Trata-se do que se convencionou chamar de “regras de chinese wall”, que importa na adoção de barreiras de informação, segregação física, de estrutura, de pessoal, etc, tudo para preservar a independência das áreas e evitar a influência de informações privilegiadas nas operações em bolsa realizadas pelas instituições financeiras.
De outro, na prática, começou-se a verificar cada vez mais uma presunção (numa intensidade preocupante, diga-se) de que se houve negociação em bolsa, o foi por influência da posse de informação privilegiada, sem que a CVM fizesse uma análise quanto à eficiência da chinese wall da instituição financeira, tampouco provasse o acesso à informação por parte de quem tomou a decisão de investimento, dois requisitos essenciais da infração.
No cenário recente, portanto, inobstante a regra formalmente admitir a coexistência de áreas nas instituições financeiras, estas passaram a enfrentar acusações de insider trading que tudo presumiram, inclusive o acesso à informação privilegiada por parte de quem tomou a decisão de investimento, sem que fossem feitas diligências efetivas para averiguar os fatos, como, por exemplo, tomar depoimentos e analisar a chinese wall da instituição.
Para entender como se chegou a esse ponto, é preciso voltar atrás alguns anos e tratar brevemente da prova nos casos de insider.
Sem dúvida, casos dessa natureza são sempre altamente complexos e desafiadores. Principalmente por tratar-se de crime de difícil comprovação. A prova é um desafio tanto para quem acusa, quanto para quem se defende. Isso porque, assim como é difícil para a acusação comprovar a detenção de informação privilegiada pelo acusado (sendo, normalmente, utilizados indícios para tanto), muitas vezes é até mesmo diabólica a defesa do acusado, que deve demonstrar que não negociou com base em informação privilegiada.
Pela própria natureza da irregularidade, de há muito se admite a prova indiciária. Assim entendida, como destacam inúmeros precedentes da CVM, o conjunto de indícios convergentes e contundentes, que indicam a ocorrência de insider trading. Não basta, por exemplo, negociar na véspera de fato relevante, se a negociação manteve o perfil e habitualidade do investidor (pois nesse caso um indício de uso indevido é desconstruído pelo contra indício de habitualidade que demonstra falta de atuação específica para tirar proveito de informação). Além de ser essencial demonstrar comportamento típico de insider, é igualmente essencial comprovar o acesso à informação privilegiada.
A CVM sempre se preocupou em reunir esse conjunto probatório. Não por outra razão, até então, comumente além dos insiders que se aproveitaram da informação, a fonte da informação privilegiada (quem a retransmitiu ao insider) era acusada por faltar com seu dever de manter a informação em sigilo. Isso, até um julgamento em 2008, quando a prova de acesso à informação privilegiada foi relativizada.
No julgamento do PAS 24/05, ocorrido em 2008, o Colegiado pela primeira vez admitiu a presunção de acesso à informação privilegiada. Naquele caso, o Colegiado afastou a necessidade de prova da detenção de informação privilegiada, se houver indícios que demonstram a atipicidade da operação, ressaltando à ocasião que esses indícios precisavam ser fortes, contundentes e convergentes (tais como realização de operações nitidamente sem fundamento econômico-financeiro aliada à utilização de interposta pessoa ou outras formas de fraude).
A partir desse julgamento, verificou-se na prática o alargamento desse conceito, com a formulação de acusação sem prova de acesso à informação e nem o cuidado de se demonstrar, mesmo que indireta e indiciariamente, essa detenção. As acusações em alguns casos deixaram de se preocupar em provar, mesmo que indiciariamente, o acesso à informação privilegiada, requisito absolutamente essencial da infração (afinal, só há insider se houver intenção de tirar proveito de informação privilegiada).
A presunção de acesso à informação privilegiada chegou a intensidade tal que, mais recentemente, num caso envolvendo instituição financeira multisserviços, o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional - CRSFN (Recurso nº 13264) decidiu pela condenação de uma instituição mesmo sem a prova direta de que quem negociou teve acesso à informação tida por privilegiada. O CRSFN entendeu que, para configuração do insider, bastava que qualquer pessoa na instituição tivesse tido aquele acesso, pois no caso seria suficiente que a “mente corporativa” da instituição fosse possuidora da informação privilegiada, se não fosse provada a eficiência da chinese wall (isso, num caso onde não se acusou de descumprimento às regras de chinese wall).
Críticas à parte à ausência de diligências concretas por parte da acusação a fim de verificar se houve ou não falha na barreira de informação, esse precedente do CRSFN elevou ainda mais o grau de presunção contra tais instituições, por adotar o conceito de “mente corporativa”.
A aplicação desse conceito de forma indiscriminada poderia inclusive inviabilizar a existência de instituições financeiras multisserviços, pois é da natureza dessas instituições que a detenção de informações privilegiadas conviva com negociações, sem qualquer irregularidade, considerando a segregação efetiva de suas atividades.
Afinal, o conceito de “mente corporativa” levado a seu extremo faria com que as barreiras à informação fossem desconsideradas, fazendo com que operações absolutamente normais fossem tidas por irregulares. Mais ainda, nesse cenário de presunção extrema, a coexistência de áreas, admitida expressamente nas regras da CVM, restaria inviabilizada.
E a esse extremo se chegou num caso concreto. Trata-se do PAS RJ 2013/11654, julgado em 23 de setembro de 2014, onde foi formulada acusação unicamente porque de um lado houve negociação e de outro acesso à informação supostamente privilegiada, sem qualquer diligência para apurar se a negociação foi influenciada pela informação e se, portanto, as barreiras de informação falharam.
Ao julgar esse caso, a Diretora Relatora Ana Novaes foi expressa ao entender que “o conceito de ‘mente corporativa’ não pode ser invocado como presunção absoluta de ilícito quando os próprios reguladores de mercado de capitais, no Brasil e em outras jurisdições, admitem a existência de controles internos para assegurar a devida separação das atividades nos conglomerados financeiros”. E complementou, entendendo ser necessário “averiguar se o chamado chinese wall e o uso de listas restritas foram efetivos e se a negociação ocorreu sob o conhecimento de informação relevante”.
Esse entendimento, além de trazer alguma luz e certa limitação à aplicação da teoria da “mente corporativa”, foi bem claro no sentido de que os requisitos do tipo, tais como a detenção de informação privilegiada e a negociação com base nesse conhecimento devem, necessariamente, ser verificados para que haja condenação. Por isso, no caso de instituições financeiras, a CVM nunca poderá se furtar do ônus de verificar a existência e efetividade das barreiras de informação, não podendo ser aplicada presunção absoluta de conhecimento da informação privilegiada por quem negociou tão somente porque outro funcionário da instituição teve acesso a essa informação.
Por isso, como antecipa o título deste artigo, o Colegiado da CVM andou muito bem, em decisão ponderada e extremamente diligente, restaurando a segurança jurídica para as instituições financeiras multisserviços, que poderão manter a coexistência de áreas (como as de negociação em bolsa e assessoria financeira) e confiar na autorização legal que a admite. Afinal, o Colegiado da CVM declarou expressamente que a existência dessas áreas será respeitada e elas somente serão sujeitas à exposição de um caso de insider trading se falharem em suas barreiras de informação, de modo a comprometer a independência do processo de tomada de decisão de investimento em bolsa de valores.
Juliana Paiva Guimarães é sócia responsável pela área de contencioso CVM e Banco Central do Barbosa, Müssnich & Aragão Advogados.
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Fernanda Pereira Carneiro é advogada sênior da área de contencioso CVM e Banco Central do Barbosa, Müssnich & Aragão Advogados.
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