O Capitalismo vem sendo questionado não apenas no Brasil, mas também nos Estados Unidos. Churchill costumava dizer: "O grande mal do capitalismo é que ele distribui a riqueza para poucos, mas o socialismo é pior, pois distribui a pobreza para todos".
Em 2011, o movimento "Occupy Wall Street" acampou no Parque Zuccoti, em Nova York, para manifestar sua reprovação ao modelo capitalista praticado nos Estados Unidos. Segundo pesquisa realizada pelo Pew Research Center, em dezembro de 2011, 48% dos americanos apoiavam a manifestação e 30% eram contrários.
O professor Luigi Zingale, formado em economia pela Universidade de Bocconi, na Itália, com doutorado pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) e professor da Universidade de Chicago, critica o atual modelo capitalista americano por ter se transformado no "Capitalismo de Compadrio".
Em seu livro "Um Capitalismo para o Povo" (2012) cita, logo no prefácio, o caso do hedge fund "Long Term Investment Bank", em 1998, em que o governo americano alterou as regras do mercado para resgatá-lo, protegendo seus investidores e administradores, inclusive um ex-vice-presidente do FED.
Outros pontos enfatizados por Zingale em seu livro podemos assim resumir:
1) "Os americanos estão com raiva. Raiva dos banqueiros, raiva do establishment político e raiva de um sistema econômico que torna os ricos mais ricos e deixa os pobres para trás".
2) "Estou furioso porque a ideia do livre mercado tem sido cada vez mais açambarcada por interesses empresariais enraizados, alterando fundamentalmente o equilíbrio da democracia americana. Apesar de todos esses defeitos, esse sistema capitalista oferece a melhor esperança para a maioria".
3) "A concorrência proporciona às pessoas produtos melhores a preços mais baixos. Há poucas barreiras à entrada - em média são necessários quatro dias para abrir uma empresa nos Estados Unidos, contra 26 no Japão e 128 na Indonésia". No Brasil, o governo encaminhou ao Congresso a MP 861 da Declaração de Direitos à Liberdade Econômica para nos tornar mais competitivos.
4- O capitalismo americano se desenvolveu num período em que a parcela governamental no PIB era minúscula. A fração do PIB controlada pelo governo aumentou sete vezes entre 1900 e 2005, enquanto a influência do governo aumentou ainda mais pela eterna expansão da regulação.
5- Comparando as tendências dos séculos XX e XXI, Zingale diz: "O século XX caracterizou-se pelas ideologias e o século XXI será caracterizado pela análise de dados. Quando há dados disponíveis, não há crime, trapaça ou embuste capaz de sobreviver a uma boa análise. Mas a concorrência não funciona quando a proteção jurídica é fraca. Por esse motivo reconheço a importância das regras. Mas defendo regras mais simples e menos numerosas".
6- "Como costumava dizer o presidente Theodore Roosevelt, é difícil melhorar nossas condições materiais por meio de melhores leis, mas é bem fácil arruiná-las com leis ruins". Livros de outros acadêmicos e empresários têm defendido pontos de vistas semelhantes, como o “Capitalismo Consciente” de John Mackey, CEO do Whole Foods Market e Raj Sisodia, professor da Universidade de Bentley. Da mesma forma que destaquei alguns pontos do livro de Zingale, pretendo fazer o mesmo com os dos demais autores que citarei. Costumo brincar que John Mackey abriu uma quitanda com US$ 23 mil, em Austin, no Texas, em 1978, e vendeu uma cadeia de supermercados, "Whole Foods Markets", há alguns anos, por US$ 20 bilhões. Mas foi uma experiência de vida testada logo na abertura de seu primeiro supermercado - quando sofreu uma inundação, e contou com o apoio de seus clientes, empregados, fornecedores e investidores - que levou John Mackey a buscar uma nova filosofia de vida mais rica, mais holística e mais humanista do que a encontrada nos livros de economia.
Cito a seguir algumas das afirmações de John Mackey:
1-"Ao longo da história, nenhuma criação humana exerceu maior impacto positivo sobre tantas pessoas e com tamanha velocidade como o capitalismo de livre iniciativa. As extraordinárias inovações deflagradas pelo sistema libertaram parte da humanidade de trabalhos penosos e irracionais. Há apenas 200 anos, 85% da população vivia em extrema pobreza e hoje esse índice está em 16%. Desde 1800, a renda média per capita mundial aumentou 1000% e o padrão de vida do norte americano comum cresceu 10.000%. O PIB da Coreia do Sul aumentou 260 vezes desde 1960."
2-"Apesar de permitir a prosperidade generalizada, o capitalismo de livre iniciativa conquistou pouco respeito entre os intelectuais e quase nenhum afeto das massas. O capitalismo é acusado de explorar trabalhadores, ludibriar consumidores, promover desigualdades ao beneficiar ricos em detrimento de pobres."
3-"Acreditamos que o capitalismo se encontra sob ataque por várias razões: ele precisa de uma nova narrativa com um novo fundamento ético. Muitas empresas funcionam com baixo nível de consciência quanto a seu verdadeiro propósito e ao impacto que exercem no mundo - o mito de que as empresas devem se concentrar na maximização dos lucros. A regulamentação, o tamanho e o alcance dos governos cresceram muito, criando condições para a expansão de um "um capitalismo entre amigos".
4-"Altos executivos muito bem empregados têm manipulado o jogo para enriquecer às custas das corporações que comandam e seus stakeholders. Enquanto as médias salariais seguem estagnadas há décadas nos Estados Unidos, as remunerações dos executivos têm disparado, extinguindo a solidariedade nos locais de trabalho. De acordo com o Institute for Policy Studies, a remuneração do cargo de CEO e o salário médio era de 42:1 em 1980, chegou ao pico de 525:1 em 2000 e nos últimos anos tem flutuado, registrando 325:1 em 2010. O Gallup identificou uma queda de confiança dos americanos nas corporações de 34% em 1975 para 16% em 2009”.
Philip Kotler, na introdução de seu livro "Capitalismo em Confronto", depois de citar Mahatma Gandhi, afirma: "A diferença entre o que estamos fazendo e o que somos capazes de fazer resolveria todos os problemas do mundo". E continua: "Acredito que o capitalismo seja melhor do que qualquer outro sistema. No entanto, também acredito que ele apresenta grandes deficiências:
1) Propõe poucas soluções ou praticamente nenhuma, para a pobreza persistente.
2) Gera crescente nível de desigualdade de renda e riqueza.
3) Deixa de pagar um salário digno a bilhões de trabalhadores.
4) Poderá não propiciar quantidade suficiente de empregos humanos, em face da crescente automatização.
5) Não cobra das empresas os custos sociais totais de suas atividades.
6) Explora o meio ambiente e os recursos naturais na ausência de regulamentação.
7) Cria ciclos econômicos e instabilidade na economia.
8) Enfatiza o individualismo e o auto interesse à custa da comunidade e do povo.
9) Estimula o débito elevado do consumidor e conduz a uma economia cada vez mais impulsionada pelas finanças do que pelos produtos.
10) Permite que os políticos e os interesses comerciais colaborem para subverter os interesses econômicos da maioria dos cidadãos.
11) Favorece o planejamento de lucros no curto prazo em detrimento de investimentos no longo prazo.
12) Deve incluir os valores sociais e a felicidade na equação do mercado”.
Publiquei dois artigos no Valor alguns anos atrás: "O Capitalismo Solidário" e o "Capitalismo Destrutivo", que foram os motivos que me levaram a organizar esse Fórum.
Somente em economias de mercado é que o capitalismo pode prosperar, transformando- se no grande agente de geração de riqueza. Mas economias de mercado não prosperam sem a livre concorrência, a competição, a desburocratização e a liberdade de expressão e de opinião.
Por outro lado, sem liberdade de expressão e de opinião, torna-se impossível a crítica e a mudança das práticas que inibem ou impedem o desenvolvimento eficiente dos mercados.
Nas economias de mercado, a alocação mais eficiente da sua poupança é feita por meio dos instrumentos do mercado de capitais. Sem poupança não há investimentos e sem investimentos não há desenvolvimento sustentado. Alocação ineficiente da poupança, pela centralização das decisões de investimentos nas mãos do Estado, traz benefícios menores para a sociedade, muitas vezes resultando em privilégios para alguns setores da economia, ou pior ainda, em um processo de corrupção sistêmico. A prática do capitalismo de compadrio é mais frequente nessas circunstâncias.
Por outro lado, a seleção dos investimentos via mercado de capitais, que tem no lucro gerado por esses investimentos sua melhor medida, se não for bem distribuído entre os fatores de produção resulta na crítica feita por Winston Churchill e em movimentos como Occupy Wall Street.
Roberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões, que em 1964 assumiram a condução da política econômica brasileira, já reconheciam a necessidade de o capitalismo brasileiro seguir um novo rumo. Com a edição das leis 4595/64 e 4728/65, e a criação dos Fundos 157, os dois desejavam fazer do mercado de capitais o grande instrumento de captação de recursos para as empresas privadas nacionais. A democratização de seu capital foi o início de um modelo de capitalismo para todos.
Naquela época, a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro concentrava 95% das negociações em pregão e era dominada pelas empresas estatais, com destaque para Banco do Brasil, Vale do Rio Doce e Petrobrás.
Roberto Campos costumava dizer: "Se encaro com apreensão o furor estatizante que periodicamente assola o país, não é por preconceito ideológico contra a empresa pública. As razões são outras: porque já vi empresas do Estado que começaram eficientes sucumbirem ao longo do caminho ao assalto combinado do empreguismo, da politização dos gerentes, da soberba da indiferença a custos de produção e da aceitação mansa de déficits de operação como estilo normal de vida".
Palavras proféticas para quem acompanha hoje a Operação Lava Jato, que desvenda os escândalos de corrupção e da péssima gestão da Petrobrás - um dos maiores exemplos de capitalismo destrutivo em nível mundial. Esse é, sem dúvida, o maior desafio que enfrenta o modelo capitalista ou uma economia de mercado para ser resolvido: como fazer com que a seleção mais eficiente de alocação da poupança beneficie igualmente o capital humano, o capital financeiro e o capital ambiental. Não é, apenas, o processo de centralização da seleção dos investimentos na mão do Estado que torna as economias menos competitivas. A existência de monopólios ou oligopólios, inibidores da concorrência e competição, a falta de liberdade de opinião e expressão, a regulamentação excessiva e a autorização para o funcionamento de cartórios de autorregulação - verdadeiros “processos associativos de compadrio" (ou “corporativistas de compadrio”) podem ser tão prejudiciais à produtividade da economia quanto a decisão centralizada de alocação da poupança.
Economias protegidas da concorrência internacional são economias de baixa produtividade. O Brasil é das economias mais fechadas para o comércio internacional.
No início da década de 80, quando as inovações trazidas ao mercado pelas startups da nova economia americana se multiplicaram, o Brasil se fechou a essas inovações, criando uma "Lei da Informática" para a proteção de grandes grupos interessados nesse setor. Seguramente, o resultado dessa proteção ainda tem um enorme impacto negativo sobre a produtividade da economia brasileira. Crescimento e desenvolvimento sustentado só se realizam com o aumento da produtividade dos fatores de produção:
1) Capital humano, pela educação e inovação;
2) Capital financeiro, pela alocação eficiente da poupança através dos instrumentos do
mercado de capitais;
3) Capital ambiental pelo desenvolvimento da pesquisa e sua utilização racional.
O desenvolvimento do mercado de capitais no Brasil tem sido vítima de uma política ciclotímica do Governo, que ora favorece a participação do Estado na economia como seu principal agente financiador (estimulando a economia do compadrio ou a intervenção direta na criação de empresas estatais), e ora apoia o desenvolvimento do mercado de capitais como veículo mais eficiente de alocação da poupança.
O resultado é que, após mais de 50 anos de reformulação dos mercados financeiro e de capitais com as leis 4595/64 e 4728/65 respectivamente, temos um mercado de capitais com pouco mais de 400 empresas listadas em bolsa, das quais mais de 200 não fazem captação de recursos no mercado. Há pouco mais de um milhão de investidores individuais registrados na clearing da bolsa e um sistema bancário fortemente concentrado em três bancos estatais e três bancos privados.
A B3 publicou em 2018 um relatório do perfil histórico dos investidores pessoas físicas, que nos revelou muitos dados curiosos. De 2002 a 2017, o número de pessoas físicas na bolsa de valores cresceu 613,2% - de 85 mil para 613 mil.
(*) Em 2022, esse número cresceu exponencialmente, atingindo a marca de 5 milhões de contas (CPFs) de investidores. Parece muito, mas representa ainda um percentual muito pequeno da nossa população economicamente ativa.
As revisões introduzidas na segunda metade da década de 70 com a nova lei das sociedades anônimas, a criação da CVM, da legislação dos fundos de pensão e posteriormente dos fundos abertos de previdência privada, e o surgimento e fortalecimento de entidades, foram novas tentativas para fazer com que o mercado de capitais exercesse sua função de principal alocador da poupança privada no país.
Novamente, no início dos anos 90, com a autorização da entrada dos investidores estrangeiros, a internacionalização da CVM e a regulação de novos instrumentos para o desenvolvimento do mercado, como os fundos de investimento para empresas emergentes, fundos imobiliários, certificados audiovisuais, entre outros, e o lançamento do Plano Real, ou seja, com tudo isso parecia que o mercado de capitais se estabeleceria como o veículo para a retomada de nosso crescimento econômico sustentado.
Infelizmente, nos últimos anos, temos assistido ao fortalecimento dos fatores que inibem o desenvolvimento de um mercado competitivo:
1) Desde a Constituição de 88, segundo estudo do ex-chefe da PGFN, professor Cid Heráclito, foram mais de 5,5 milhões de atos regulatórios, desde emendas constitucionais até portarias de chefes de seção, num verdadeiro "delírio regulatório" que posiciona o Brasil sempre numa das piores colocações de competividade das economias mundiais segundo o relatório "Doing Business" do Banco Mundial ou do “Year Book” do International Institute for Management Development da Suíça, onde já ocupamos a posição 38 em 2010.
2) Um regime tributário que arrecada quase 37% do PIB e uma necessidade de financiamento da dívida pública faz com que a sociedade brasileira seja vítima de um "sequestro" de sua poupança, que se aproxima dos 45% do PIB. Entidades do setor privado, por meio da prática da autorregulação e da certificação, têm copiado os exageros do governo para se estabelecer como verdadeiros cartórios que resultam numa restrição à competitividade na economia.
Quando estive na presidência da CVM, de 1993 a 1995, incentivei entidades a praticarem a autorregulação e, ao mesmo tempo, procurei estimular a competição de seus agentes na economia, quebrando, com uma simples reinterpretação da Lei 6385/76, o monopólio da gestão de fundos por instituições financeiras, autorizando instituições não financeiras a serem gestoras de fundos.
Resultou dessa mudança a criação de uma nova entidade do mercado de capitais, a Abvcap, e um polo de gestores de recursos independentes, “asset managers” na cidade do Rio de Janeiro, de muito sucesso. Busquei reposicionar a CVM no contexto das entidades reguladoras filiadas a IOSCO, pois da mesma forma que em 1991, na gestão do professor Ary Oswaldo Mattos Filho na presidência da CVM, nosso mercado foi aberto ao investidor estrangeiro, com ótimos resultados, acreditava que a presença da CVM nos organismos reguladores internacionais era uma abertura de mercado que daria mais confiança aos investidores para aplicarem seus recursos no Brasil.
Sempre defendi que a informação, educação, fiscalização e penalização exemplar eram mais importantes do que a regulação excessiva. Julgamos e condenamos o caso Nahas, até então o mais emblemático do mercado de capitais brasileiro, responsável pela quebra da Bolsa do Rio em 1989, a mais antiga bolsa do Brasil, fundada em 1845.
Face à mudança de governo e das propostas que têm sido apresentadas a sociedade e ao Congresso vejo com muito otimismo as perspectivas de uma nova economia de mercado, com o mercado de capitais exercendo seu papel no desenvolvimento econômico e social do País, criando-se um novo modelo de Capitalismo Solidário.
Nesse contexto caberá ao BNDES uma nova missão, coordenando o processo de privatização, estimulando os investimentos na infraestrutura econômica e social, apoiando projetos de habitação, educação, água, saneamento, mobilidade urbana e melhor distribuição da riqueza, por meio de estímulos à ampliação da base de acionistas das empresas de capital aberto e apoio às micro, pequenas e médias empresas - as grandes responsáveis pela geração de empregos e de inovação, numa parceria público privada de sucesso.
NOTA: Palestra proferida por Thomas Tosta de Sá, na abertura do “Fórum: Desafios do Capitalismo”, promovido pelo CODEMEC - Comitê para o Desenvolvimento do Mercado de Capitais, e pelo FGV/IBRE – Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, em 17/07/2019, na sede da FGV no Rio de Janeiro.
Thomas Tosta de Sá
é presidente executivo do CODEMEC - Comitê para o Desenvolvimento do Mercado de Capitais, ex-presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
thomas@codemec.org.br