Certamente você já ouviu falar da economia verde e da economia azul, mas e sobre a “economia laranja”? Sem uma definição única, a economia laranja – originalmente conhecida como economia criativa – reúne, segundo a UNESCO, setores cuja finalidade principal é a produção ou reprodução, promoção, divulgação e/ou comercialização de bens e serviços cujo insumo principal é a criatividade. A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) assumem que a economia laranja é um conceito em evolução, baseado em ativos criativos potencialmente geradores de crescimento e desenvolvimento econômico.
Por que laranja? A cor laranja é associada historicamente à criatividade, inovação, cultura e identidade. Ademais, para pesquisadores do tema, à economia criativa faltava uma identidade que permitisse resgatar a confiança dos que tendem a não levar o termo original a sério.
Até pouco tempo atrás, a economia criativa era vista pelo mundo como um fenômeno de algumas poucas economias desenvolvidas. Felizmente, hoje essa perspectiva vem mudando, muito em função da ação de organizações internacionais, bancos de desenvolvimento e dos esforços conjuntos viabilizados por meio da Conferência Mundial sobre Economia Criativa (WCCE), iniciada no Sudeste Asiático, e a iniciativa da Economia Laranja na América Latina, com esforços do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que aceleraram a cooperação Sul-Sul , visando a potencializar o impacto das indústrias criativas no crescimento e desenvolvimento econômico em mercados emergentes.
Na América Latina, o Brasil, apesar do enorme potencial já identificado, tem tratado o tema de forma marginal. Colômbia, Peru e México vêm se destacando no fomento aos setores que formam essa economia. A Colômbia, por exemplo, está fortalecendo o fomento às indústrias criativas com meta para aumentar sua participação na economia nacional dos atuais 3% para 10% do PIB nos próximos anos. A Cúpula Global da Economia Laranja que aconteceu na Colômbia, em 2019, consolidou o protagonismo do país nessa agenda.
Neste artigo, a intenção não é confrontar conceitos e nem tentar dar uma definição única para o termo, mas sim falar das relações da economia laranja – que abarca os setores que mais cresceram nos últimos anos em todas as regiões do mundo – com um modelo de desenvolvimento mais sustentável.
Então, vamos começar entendendo que tipo de laranja é essa e qual o tamanho dela?
Foi John Howkins quem trouxe uma das mais importantes contribuições sobre essa “nova economia” em seu livro “The creative Economy”, de 2001, no qual ressaltou a importância de se compreender alguns dos seus princípios balizadores: Princípio 1 – todo mundo nasce com imaginação e criatividade, elas não são características especiais; Princípio 2 – o contexto social no qual as pessoas têm ideias é o que define a ecologia criativa, um sistema em que o foco está em como as ideias circulam na sociedade e como podem ser feitos negócios a partir delas; Princípio 3 – criatividade requer liberdade para pensar, se expressar, explorar, descobrir, questionar; e Princípio 4 – liberdade precisa ter acesso ao mercado.
Adiciono, a esses princípios, outros três que o Banco Interamericano de Desenvolvimento trouxe em seu Manual da Economia Laranja: Princípio 5 – nem toda criatividade se converterá em produtos ou serviços e isso não é um problema, mas aqui importa o que é comercialmente viável; Princípio 6 – economia criativa não é sinônimo de economia da cultura; e Princípio 7 – “criativa” ou “laranja” não é a economia e, sim, as pessoas que a compõem. É importante ter em mente esses princípios para compreender como economia laranja contribui para o crescimento e o desenvolvimento sustentável.
Embora a dedicação a atividades criativas não seja uma novidade e ainda que as inovações tenham estado em evidência ao longo dos anos, as discussões em torno da criatividade enquanto ativo econômico ganharam destaque nas agendas globais de desenvolvimento somente na década de 1990, quando o termo “indústrias criativas” foi cunhado, primeiramente na Austrália e ganhando impulso na Inglaterra em seguida.
O núcleo da economia laranja abrange uma ampla gama das chamadas indústrias criativas, que incluem, dentre outras, a indústria da música, museus, publicidade e propaganda, cinema, design, jogos, arquitetura, moda, editorial, mídia e software. No clássico jargão econômico, são indústrias com grande poder de encadeamento, “para trás” e “para frente”. Ou seja, têm condição ou capacidade de serem responsáveis pela indução de novas atividades e de demanda, levando ao surgimento de outros setores.
É o caso da indústria da publicidade e marketing viabilizando subsetores tais quais agências de publicidade, relações públicas e atividades de comunicação. Outros exemplos estão relacionados às marcas mais valiosas do mundo, todas ligadas à economia laranja e baseadas em diferentes categorias de intangíveis, como a Apple, Google e Microsoft, baseadas em ciência e tecnologia, e a Luis Vuitton ou Disney, nas quais as narrativas construídas se baseiam nas artes e na cultura para atribuir valor aos seus produtos e serviços.
A economia laranja vem apresentando uma tendência de crescimento rápido, com o comércio de bens e serviços criativos crescendo a uma taxa que supera a de outras indústrias mais tradicionais.
O mercado global de bens criativos se expandiu substancialmente, mais do que dobrando de US$ 208 bilhões em 2002 para US$ 509 bilhões em 2015. Nos último dez anos, o setor tem sido um motor-chave do crescimento econômico, obviamente com níveis de avanço variando de país para país. Não fosse pelo baque sofrido em função da pandemia, as previsões seriam melhores, ainda assim, a estimativa é de que a economia criativa alcance um valor global de US$ 985 bilhões até 2023, o que representaria cerca de 10% do PIB global.
Um estudo recente da Deloitte, em seis grandes economias europeias (Alemanha,
Reino Unido, França, Itália, Espanha e Turquia) e três da Ásia-Pacífico (Japão, Coreia do Sul e Austrália) mostrou que a economia criativa empregava quase 20 milhões de pessoas nessas nove nações em 2018, representando cerca de 7% do emprego total e um aumento de pouco mais de 4 milhões de empregos de 2011 a 2018. Ainda, nos nove países do estudo, a economia laranja tem crescido mais rapidamente do que a média da economia nacional.
Tendências de crescimento na economia criativa
Em 2020, a Índia, maior produtor mundial de filmes, teve a sua indústria cinematográfica avaliada em cerca de US$ 2,5 bilhões. Na África do Sul, as indústrias criativas contribuíram com 5,6% do PIB. Na Nigéria, o crescimento da indústria da música chegou a uma taxa anual de 13,4% em 2020; no país, a indústria cinematográfica emprega cerca de um milhão de pessoas e, com mais de 2.000 filmes produzidos por ano, estava à frente de Hollywood.
No Quênia, o setor de entretenimento e mídia cresceu, em média, quase 7% de 2014 a 2018. Em 2020, as indústrias das artes e da cultura adicionaram US$ 876,7 bilhões ao PIB dos Estados Unidos e representaram 3% de todos os empregos gerados no país. Neste mesmo ano, os EUA registraram um superávit comercial de US$ 28 bilhões em artes e mercadorias culturais.
No Brasil, entre 2017 e 2020, a participação do PIB criativo no PIB nacional passou de 2,61% para 2,91%. Em 2020, o PIB criativo totalizou R$ 217,4 bilhões – valor comparável à produção total do setor de construção civil e superior à produção total do setor extrativista mineral. Em termos de geração de emprego, foram mais de 935 mil profissionais criativos formalmente empregados em 2020, um aumento de 11,7% em relação ao observado em 2017.
Da criatividade à competitividade
Nos últimos 20 anos, as empresas têm reconhecido a importância do conhecimento e da criatividade (ativos inflexíveis) enquanto insumos de produção e perceberam o seu papel transformador no sistema produtivo vigente. Ativos inflexíveis são aqueles que conferem um importante diferencial de competitividade devido ao seu baixo grau de apropriabilidade por parte das outras empresas no mercado.
As indústrias criativas têm sua centralidade em recursos imateriais, intangíveis e renováveis, que não apenas não se esgotam como se renovam e se multiplicam com o uso. Portanto, trabalhar com estratégias de crescimento e inovação a partir de recursos intangíveis e de novos modelos de gestão, apesar de ser uma tarefa difícil, tem muito a contribuir em termos de ganhos de competitividade, tanto quando a análise é feita em um contexto mais macro, observando países, quanto em um contexto micro – neste último, olhando especificamente para as empresas.
O conhecimento é um dos principais elementos diferenciadores de mercado por gerar vantagem competitiva, tendo em vista, sobretudo, assimetrias causadas a partir de sua dimensão tácita que, uma vez se acumulando no tempo, vai somente reforçar o poder da companhia no processo de concorrência. Nesse contexto, é essencial enxergar a tecnologia como fator catalizador de todo o potencial da economia laranja. Os avanços tecnológicos dos últimos anos têm contribuído para o desempenho das indústrias criativas a partir de vantagens em termos de custos, desenvolvimento de novos produtos e escala. Um ponto chave está no processo de difusão das tecnologias da informação e comunicação (TICs), que aceleraram a codificação do conhecimento e a disseminação de informações.
As indústrias criativas funcionam em um modelo de mercado altamente interligado (papel desempenhado justamente pelas TICs), no qual a capacidade de uso da tecnologia a favor da companhia deve ser entendida enquanto ponto estratégico para determinar o nível de sucesso neste mesmo mercado. Cabe frisar que essas indústrias apresentam, ainda, um forte conteúdo de intangíveis, demandando habilidades especiais da força de trabalho e apresentando estreita relação com os avanços científicos e tecnológicos.
Conforme mencionado no início deste artigo, criativas são as pessoas que formam essa economia, portanto, trata-se de um setor em que a gestão de stakeholders é um pilar estratégico para transformar riscos em oportunidades. Grandes indústrias criativas, dos mais variados segmentos, ao exemplo da IBM, Tencent, Intel, Gensler, Perkins and Will, Samsung e Netflix, concentram altos gastos em atividades de capacitação, pesquisa, desenvolvimento e inovação, e buscam desenhar boas estruturas de gestão de pessoas, no intuito de identificar suas competências fundamentais e incorporá-las nas estratégias corporativas.
A cadeia de valor da economia criativa reflete a essencialidade das pessoas desde o processo de criação até a distribuição e o consumo final dos produtos e serviços. ao longo do processo produtivo, também é possível perceber diferentes elos com o meio ambiente, as instituições, os consumidores e o mercado. A tecnologia entra de forma transversal nesse processo. Vale resgatar, aqui, um dos princípios que mencionei anteriormente: entre uma infinidade de ideias, experimentos e criações geradas pelo processo de inovação, apenas uma parte deles será comercialmente viável.
Cadeia de valor da economia criativa
Incentivos como acesso a crédito e políticas públicas desempenham um papel crucial em diferentes estágios da cadeia de valor, que funciona em uma lógica de retroalimentação. Igualmente, merece ênfase a implementação da boa governança na propriedade intelectual e nas instituições, enquanto elementos transversais facilitadores dos processos que fazem parte da cadeia.
Para as empresas que buscam uma operação sólida alinhada a um negócio sustentável – e aqui estendo meus comentários para não somente as que fazem parte da economia criativa –, é importante uma reflexão contínua, buscando entender de que forma a gestão ou a não gestão de stakeholders pode trazer riscos ou oportunidades às operações. Como os vários stakeholders podem influenciar nos modelos de negócios?
As tecnologias da informação e comunicação intensificaram o grau de conectividade dos mercados e das empresas com seus consumidores, o que pode representar uma oportunidade e um risco, ao mesmo tempo. Por isso, a gestão de stakeholders deve estender-se para toda a cadeia de valor da empresa, para todos os seus fornecedores.
Outro tema importante é o olhar para a diversidade e inclusão, que colaboram para novos caminhos, tecnologias, inovações. No contexto das empresas, aquelas que não se atentam para essa agenda podem perder posição em termos de produtividade e competitividade, uma vez que ambientes mais diversos tendem a ser mais criativos, dinâmicos e produtivos, refletindo diretamente nos resultados da companhia.
Da criatividade à sustentabilidade
A Organização das Nações Unidas (ONU) designou o ano de 2021 como o Ano Internacional da Economia Criativa para o Desenvolvimento Sustentável. Decorrente disso, o Comitê Intergovernamental da Convenção da UNESCO aprovou um programa de financiamento de iniciativas que irão impulsionar as indústrias criativas nos países em desenvolvimento em todo o mundo. Ainda em 2021, por meio da “Declaração de Roma”, o G20 – grupo que reúne os 19 países com as principais economias do mundo mais a União Europeia – posicionou firmemente a economia criativa como um importante motor para a recuperação socioeconômica sustentável após a pandemia de COVID-19.
Por meio desse esforço conjunto do G20, observa-se um crescente alinhamento das prioridades das maiores economias sobre a importância da economia laranja à Agenda 2030 das Nações Unidas para o desenvolvimento sustentável, por meio do apoio a ações de mudanças climáticas, padrões de crescimento inclusivos e equilibrados e expansão de mecanismos de governança a outros stakeholders, tais quais organizações intergovernamentais e sociedade civil. Trata-se de um diálogo multidimensional, assim como a sustentabilidade deve ser entendida e praticada.
Pensando nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a economia laranja pode contribuir diretamente, dentre outros, para os ODS 8 – Trabalho digno e crescimento econômico; ODS 9 – Indústria, inovação e infraestrutura; ODS 11 – Cidades e comunidades mais sustentáveis; e ODS 12 – Produção e consumo sustentáveis.
Ainda é recorrente encontrar a definição de sustentabilidade associada apenas à dimensão ambiental, o que é um erro, pois a sustentabilidade também se manifesta nas dimensões sociais, humanas, culturais, tecnológicas e econômicas. E é justamente por atuar simultaneamente em diferentes dimensões que a economia criativa se mostra estratégica para promover o desenvolvimento de forma sustentável. Não se esquecendo que é um setor em que os recursos se renovam e multiplicam com o uso, com forte desempenho econômico e de interação social, que pode ser ambientalmente correto e fortalecer os valores, diferenciais e a credibilidade tanto no contexto de comunidades e territórios como de empresas.
Embora na teoria a relação entre economia criativa e desenvolvimento sustentável possa parecer tão direta, na prática ela pode não ser. Na perspectiva macro, isso fica mais claro quando correlacionamos o desempenho criativo (ou score criativo) de alguns países com outros indicadores nas dimensões econômica, social e ambiental. Países que apresentam características de score criativo elevado, como os EUA e o Japão, podem estar alcançando esse desempenho às custas de uma pegada ecológica e desempenho social não ideais. O que reforça a tese de que desenvolvimento e crescimento não são sinônimos e que a dimensão econômica sozinha não é suficiente para dar base para um desenvolvimento includente, sustentado e sustentável.
Na perspectiva das indústrias, sejam elas startups, proptechs ou outras empresas inseridas no núcleo da economia laranja, como a Beike na China, Airbnb e Zillow nos EUA, ou a Totvs no Brasil, para viabilizar uma operação de fato sustentável é essencial um olhar para temas extremante materiais como relacionamento com colaboradores e para a agenda da diversidade, uma vez que os funcionários são os principais contribuintes para a criação de valor.
Geralmente existe uma dificuldade em recrutar funcionários qualificados para preencher posições em áreas da tecnologia. Uma escassez de colaboradores tecnicamente qualificados demanda políticas internas de treinamento e capacitação para reduzir taxas de rotatividade de funcionários, por exemplo. É material, também, olhar para questões de saúde dos colaboradores – dados recentes têm mostrado que as startups estão entre os negócios com maiores índices de doenças relacionadas à saúde mental.
Outro tema relevante é o relacionamento com o cliente, no qual uma boa gestão focada em garantir a privacidade de dados é essencial para reduzir riscos regulatórios e reputacionais que podem resultar em danos à imagem da empresa, diminuição das receitas, menor participação de mercado e ações regulatórias envolvendo potenciais multas e outros custos legais.
A falha em fornecer informações aos clientes sobre os produtos de maneira clara e transparente pode motivar mais registros de reclamações contra empresas, perda de clientes e, em alguns casos, multas regulatórias e acordos. Por isso, uma estrutura eficiente para tratar desse tema também deve ser priorizada.
O impacto ambiental não é um tema material para grande parte das empresas da economia laranja, porém algumas ações podem ser implementadas nas atividades das sedes corporativas, onde o consumo de recursos naturais tende a ser maior, sobretudo o consumo de energia. Vale notar que companhias aptas a gerar externalidades sociais e ambientais positivas têm a capacidade de incentivar estilos de vida saudáveis e comportamentos seguros, bem como o desenvolvimento de projetos e tecnologias relacionados à sustentabilidade.
Por fim, mas não menos importante, para alcançar maiores padrões de sustentabilidade nessa economia é prioritário adequar as políticas de emprego, proteção social, inovação e empreendedorismo às características específicas dos setores criativos. Esses setores podem gerar importantes spillovers para a economia em geral, sendo motores de inovação e fontes de competências criativas, alavancando o crescimento em outras áreas.
Alexandre Sette Abrantes Fioravante
é Consultor ESG & Climate Change na Resultante ESG. Economista e mestre em Administração pela Universidade Federal de Viçosa e especialista em criatividade, inovação e empreendedorismo pela CUOA Fondazione (Itália). Doutorando em Desenvolvimento Econômico pela UNICAMP. Desenvolve pesquisas e projetos nas áreas de economia, políticas públicas, desenvolvimento sustentável e análise de ODS.
alexandre.sette@resultante.com.br