Depois de dois anos de debates, chega à reta final o processo de reforma do Novo Mercado. As 130 empresas listadas nos segmentos especiais de governança da BM&F Bovespa (ops... B3) terão a oportunidade de se manifestar sobre as propostas apresentadas. Na prática, as empresas serão chamadas a se manifestar sobre a primeira grande atualização no regulamento dos segmentos desde a sua criação, em 2001. Só este fato – uma revisão após16 anos de história e aprendizado, deveria ser suficiente para que se debruçassem com afinco sobre a matéria. Mas, o que está em jogo é mais do que uma simples atualização de regras: é a própria sobrevivência do mercado brasileiro de ações.
O Novo Mercado foi criado em 2001 com o objetivo de propiciar um ambiente de simetria de percepção de valor e de risco. Em outras palavras, visava preencher algumas lacunas no nosso regramento que permitiam, de maneira impune na prática, a captura de valor da companhia para determinados grupos, de maneira desproporcional à sua participação no capital. Esta era a realidade do mercado brasileiro na década de 90. Um estudo da gestora Bradesco Templeton, na época, apontou um prêmio de controle médio de 721% nas transações de fusões e aquisições envolvendo empresas abertas naquele período. Estamos falando que o acionista controlador recebeu valores por ações em média 8 vezes superior aos investidores que compraram ações em bolsa. Neste cenário, o investimento minoritário em ações listadas na Bolsa se tornava um jogo de perdedores. A crescente percepção deste fato levou à mingua de aberturas de capital, que marcou a virada do milênio.
O Novo Mercado visava acabar com essa realidade, e trazer de volta a premissa pela qual se alguém compra 1% da companhia tem direito a 1% de seu valor. Trata-se de princípio essencial para que o mercado funcione. As regras incorporadas ao regulamento do segmento, incluindo one share, one vote, tag along integral, acesso à Câmara de Arbitragem, requerimento de conselheiros independentes, dentre outros visavam trazer transparência e equidade de tratamento para todos os acionistas.
Funcionou. Depois de um período de dúvidas, o Novo Mercado tornou-se condição sine qua non para que uma empresa pudesse emitir ações no Brasil. O número de listadas subiu de zero para 130, além das 29 companhias listadas no Nível 2, que possui muitas das mesmas características.
Mas, desde então o mercado acomodou-se em berço esplêndido, cantou vitória e foi se preocupar com outros assuntos. Com o passar do tempo, a lógica do homo economicus fez com que algumas empresas menos imbuídas dos princípios que embasam o segmento construíssem brechas jurídicas que tornaram ineficazes muitas das regras do Novo Mercado. Com efeito, já colecionamos hoje uma série de casos de empresas desse segmento que impuseram prejuízos e frustrações aos seus investidores. Indagados sobre a eficácia de direitos que consideravam garantidos, os minoritários foram confrontados com a cultura do "veja bem".
Por essas razões, o selo do Novo Mercado foi perdendo relevância. Se indagarmos hoje a um investidor se ele está disposto a pagar um prêmio pelo segmento, poderemos nos espantar com as respostas negativas – em forte contraste com o que ouvíamos 10 anos atrás. O goodwill foi gasto.
E aqui reside a principal razão pela qual as empresas devem estudar a matéria com profundidade e votar favoravelmente às mudanças. Aquelas que já fazem parte do segmento e de fato acreditam que devem tratar seus investidores com equidade têm todo interesse que o Novo Mercado volte (ou continue dependendo do ponto de vista) a representar um diferencial que se traduza em preços mais elevados para as ações e, consequentemente, em um custo de capital mais baixo, ressaltando-se que após o advento do Novo Mercado observou-se claramente uma relação entre boas avaliações das ações listadas e custos menores de capital para as empresas em outros instrumentos, tais como debêntures e FIDCs. Não se trata, portanto, de "bom-mocismo", ou de uma barganha maniqueísta entre empresas e investidores. Trata-se sim de uma oportunidade de ganha-ganha – pelo menos para as boas empresas.
Desde que a B3 colocou a matéria em debate, houve pelo menos 3 rodadas de consultas públicas. Infelizmente, muitas delas acabaram contaminadas por tal maniqueísmo, que enxergava cada proposta nova como uma concessão das empresas em relação aos investidores.
Entendemos que esta postura foi uma consequência da arquitetura institucional do nosso mercado de capitais. Uma vez que houve pouco envolvimento individual das empresas nas fases anteriores, a maior parte das discussões se deu no nível das entidades. E, em algumas entidades a maioria dos seus associados não pertence ao Novo Mercado ou ao Nível 2. Ainda assim, foram capazes de influenciar fortemente o debate, levando a uma enorme diluição das propostas originalmente colocadas pela bolsa.
Independente dos méritos do processo, o que se coloca agora para aprovação das companhias é o mínimo necessário para que o Novo Mercado mantenha alguma distinção e relevância. Assim como assistimos em outras reformas essenciais para o Brasil – como da previdência ou a trabalhista – sua aprovação não esgotará o tema. Será apenas um primeiro passo para continuarmos no jogo. Mas sua rejeição será fatal e trará consequências de muito longo prazo.
Em 2010 a então BM&F Bovespa tentou uma reforma que foi frustrada pelo baixo envolvimento das boas empresas. No debate reacionário, as propostas foram rejeitadas. Nos anos seguintes vimos um número crescente de problemas envolvendo empresas do Novo Mercado, desgastando cada vez mais a imagem do segmento.
As boas empresas brasileiras – aquelas que acreditam que o mercado de capitais é uma ferramenta de crescimento, financiamento e melhoria de práticas internas – não podem permitir que a proposta atual tenha o mesmo destino da sua antecessora de 7 anos atrás. As propostas podem ser classificadas em dois grupos: aquelas que tocam a governança interna das empresas e aquelas que tocam a relação entre a companhia e os acionistas. Deixaremos de comentar aqui todos os pontos, focando em alguns que, ao nosso ver, merecem uma reflexão mais profunda.
No primeiro grupo podemos incluir tópicos como a redefinição do conceito de independência, requerimento mínimo de 2 independentes no conselho de administração, instalação de Comitê de Auditoria, obrigatoriedade de auditoria interna e conformidade.
A maior parte desses assuntos já foi ou está sendo encaminhada nas empresas que se preocupam com governança. De fato, não se pode admitir que empresas negociadas no segmento premium do nosso mercado deixem de adotar essas práticas. Não se trata, portanto, de uma imposição de custos desnecessários, mas sim de incentivar a criação de estruturas mínimas que impeçam a repetição de problemas que vimos no passado.
O aumento no número de conselheiros independentes – ainda substancialmente mais baixo do que a prática internacional e as recomendações de melhores práticas – é fundamental para dar eficácia aos conselhos enquanto órgãos que efetivamente debatem suas deliberações. A diferença entre existir um conselheiro independente ou dois é abissal. Como diz o ditado, uma andorinha só não faz verão. Dois membros independentes podem dar muito mais qualidade às discussões do colegiado do que uma voz dissonante solitária. A maioria das empresas do Novo Mercado supera largamente este requerimento, sendo que as poucas empresas que serão de fato impactadas são aquelas que, provavelmente, mais precisem da presença de tais figuras.
Já o Comitê de Auditoria tem se consolidado internacionalmente como uma estrutura absolutamente essencial para que o Conselho de Administração tenha capacidade de tomar decisões embasadas. Embora o Comitê estatutário seja a melhor prática, a B3 foi flexível a ponto de permitir que o comitê não esteja previsto em estatuto. Nos parece que comentar sobre a importância das áreas de auditoria interna e conformidade seja desnecessário.
No grupo de relação empresa X acionistas, podemos destacar o quórum mínimo para a oferta de saída do Novo Mercado, a oferta por aumento de participação, manutenção dos direitos dos acionistas em caso de reestruturação societária (fechamento de brecha para retirar direitos), transparência da remuneração dos executivos, dentre outros.
Aqui temos algumas ferramentas fundamentais para devolver a credibilidade para o segmento. Qual o sentido de se pagar um "prêmio" por uma empresa do Novo Mercado se a qualquer momento ela pode "desligar" seu comprometimento com suas cláusulas, saindo do Novo Mercado? A facilidade atual de saída do segmento foi determinada quando ainda havia uma grande dúvida sobre o interesse do mercado na sua estrutura. Hoje, com 130 empresas, essa realidade não existe mais e o compromisso com a distinção trazida por este selo deve ser firme e de longo prazo. Para as empresas que já estão no segmento e que pretendem lá ficar, é seguramente mais importante dar credibilidade ao seu comprometimento do que deixar a porta aberta para decepcionar os investidores impunemente. Tendo em vista o péssimo histórico de credibilidade dos laudos de avaliação no Brasil, a única forma de garantir que o preço da oferta de saída é justo é através da adesão dos investidores.
Da mesma forma, a oferta por aumento de participação se coloca necessária tendo em vista a deterioração do conceito de tag along no Brasil. Desde a criação do Novo Mercado já testemunhamos uma série de alienações de controle que foram disfarçadas de forma a não conferir o direito de venda conjunta aos minoritários. Sem entrar no mérito da jurisprudência formada, o direito tornou-se inócuo. A oferta por aumento de participação resolve esse problema, determinando que os investidores possam alienar sua posição quando um lote relevante for comprado, independente do juridiquês sobre se houve troca de controle ou não. Tal regra segue as melhores práticas internacionais, sobretudo aquelas vigentes no mercado inglês.
Além dessas novidades, a B3 propõe a eliminação e modernização de vários requerimentos antigos, que se tornaram desnecessários dada a evolução da regulação e da lei. Aqui sim, vemos reduções significativas de custos e burocracias, que devem ser consideradas pelas companhias na hora do voto.
Portanto, não há justificativa racional para que uma empresa do Novo Mercado que acredite na equidade e na importância do mercado de capitais se posicione contrariamente às propostas. Fazê-lo significaria se alinhar às vozes mais atrasadas de nosso mercado, alienadas em relação às práticas de governança corporativa no mundo.
Os investidores estão se posicionando inequivocamente a favor da reforma. A gestora britânica Aberdeen, por exemplo, com ativos de R$ 21 bilhões no Brasil e grande acionista de empresas como Renner, Vale, Localiza e outras, enviou correspondência a todas as empresas do segmento pedindo que analisem e votem favoravelmente às mudanças. Empresas que queiram ser consideradas por investidores dessa qualidade precisam refletir nas razões para essa posição.
E a sua empresa, o que vai fazer?
(*) A AMEC publica periodicamente na Revista RI - artigos a respeito de posições importantes para a associação. O objetivo é facilitar o reconhecimento da Amec como referência em discussões a respeito do nosso mercado de capitais, e difundir as ideias defendidas pela associação para o público em geral.
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