Vivemos um momento em que escândalos corporativos recentes (como o rombo financeiro das Lojas Americanas e o colapso do Silicon Valley Bank) impulsionam uma maior exigência por regulações legais e fiscalizatórias que permitam um maior controle dos riscos das atividades empresariais e que promovam, efetivamente, os cinco princípios da Governança Corporativa, segundo a 6ª edição do Código das Melhores Práticas do IBGC: Equidade (fairness), Transparência (disclosure), Responsabilização (prestação de contas/accountability), Sustentabilidade (responsibility) e Integridade (ethics), embasados pela ética.
É nesse sentido que acompanhamos discussões acaloradas sobre o recrudescimento das condicionantes das empresas do Novo Mercado, sobre o papel das Auditorias Independentes na identificação e na mitigação de riscos e sobre a eficácia das estruturas de Governança, cujo papel seria justamente o de coibir práticas fraudulentas no ambiente corporativo. Se a questão se encontra pacificada do lado dos pensadores e dos especialistas da área, que defendem um comprometimento maior das empresas com práticas e procedimentos de Governança, do lado dos administradores, o cenário pode ser bem diferente.
Com efeito, é cada vez mais comum, nas reuniões dos boards, a defesa de estruturas de Governança mais “enxutas”, com a redução do pessoal especializado, do escopo dos trabalhos realizados e dos recursos orçamentários alocados. Propaga-se, dessa forma, uma narrativa de que órgãos colegiados de cunho fiscalizatório, como os Comitês de Assessoramento ao Conselho de Administração, ou cargos especializados, como o de Governance Officer, ou, ainda, que a implantação de controles das atividades de gestão, como os Controles SOx, enquadrar-se-iam, pura e simplesmente, na categoria de “custos” – passando-se, a partir daí, a defender uma gestão “austera”, com foco na redução dos custos corporativos.
Esse é o momento do “pulo do gato”, em que as estruturas de Governança deixam de ser vistas como um elemento estratégico para a perenidade da Companhia e tornam-se uma mera destinação “inconveniente” de recursos da empresa. Isso porque, em regra, a orientação de onde extrair essa “gordurinha” é dada pelos setores financeiro e contábil da Companhia, que podem se deixar levar pelo imperativo dos resultados de curto prazo e dos retornos imediatos aos investidores e aos acionistas da empresa, em detrimento da manutenção das estruturas que permitem gerar valor a longo prazo, como as da Governança Corporativa.
Ora, se não é possível negar que a constituição de um arcabouço robusto de Governança implica custos explícitos (como a contratação de auditores independentes) e implícitos (como a profissionalização dos gestores), são igualmente inegáveis os efeitos positivos da Governança nos negócios de uma Companhia, como a valorização de suas ações, o acesso facilitado ao capital (e a custos menores) e o maior retorno sobre os investimentos, como demonstram dezenas de pesquisas conduzidas ao longo dos anos.
A narrativa da “Governança como mero custo” parece atender, ainda, a um outro interesse da administração: o de redução de controles e mecanismos de fiscalização sobre as suas atividades. Curiosamente, em seus primórdios, os processos de Governança foram pensados justamente como um meio de mitigar os “conflitos de agenciamento” entre acionistas e dirigentes das Companhias – uma vez que estes, sem a devida fiscalização, tendiam a gerar os chamados “custos de agência”, como as remunerações e os benefícios autoconcedidos, o nepotismo e outras formas de proteção conflitantes com os interesses da Companhia, a disponibilização assimétrica de informações e a visão estreita de entregas de curto prazo.
Vale dizer: as estruturas de Governança foram originalmente concebidas como um mecanismo de redução dos custos corporativos (na forma dos “custos de agência”), ao mesmo tempo em que visavam a produção de valor a longo prazo para a empresa, com a melhoria da transparência e da comunicação corporativas.
Nesse contexto, é esperado que estruturas de Governança sejam “inconvenientes” para a administração, uma vez que os agentes de Governança não podem ser coniventes com eventuais práticas ou procedimentos falhos, devendo, ao contrário, atuar de forma imparcial, assegurando uma maior simetria entre os agentes e orientando-se em prol do interesse comum da Companhia.
Em um cenário no qual a narrativa da “Governança como mero custo” ganha terreno, o Conselho de Administração deve exercer o seu papel enquanto órgão fiscalizador máximo das atividades da administração, devendo se posicionar, de forma firme, diante de propostas que visem mitigar as estruturas de Governança de dada Companhia.
Com efeito, sem o contraponto exercido pelos Conselheiros, não há que se falar em perenidade na condução dos negócios, uma vez que esse “sistema de freios e contrapesos” é o que assegura que os agentes envolvidos não irão atuar de forma abusiva, em detrimento dos demais stakeholders e do interesse coletivo da Companhia. Uma coisa é certa: a defesa da Governança no ambiente corporativo exige esforços contínuos e consistentes de todos os seus agentes.
Sara Vinhal
é Legal Manager na Usiminas e especialista em Governança Corporativa. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), premiada no Atlas Governance Awards 2023, na categoria 'Excelência em Comunicação e Transparência'.
sararacv@gmail.com