Recentemente, escrevi daqui de Boston (EUA), onde faço um período sabático, sobre a importância da manutenção/preservação da Freedom Trail, uma trilha de aproximadamente 4 km que permite aos visitantes respirarem a atmosfera histórica da cidade. Boston é um exemplo de como o respeito pela tradição e cultura pode coexistir com o crescimento urbano. Beacon Hill, um bairro muito famoso por aqui, também é um desses casos. Mantém sua prestigiada arquitetura através do empenho de seus moradores, mesmo com a constante expansão local. E esse cuidado com a preservação se reflete em cada parte, como em Newbury Street, uma das ruas mais badaladas da região, onde a arquitetura de seus estabelecimentos é cuidada em meio a uma agitada vida comercial.
E por que estou dizendo tudo isso? Caminhando e refletindo sobre a cultura e a história desta cidade sendo mantida desde o século XVII, época de sua colonização, comecei a pensar: qual a relevância da tradição? Da cultura e do propósito para a longevidade, inclusive a das empresas? Por que, em muitas organizações, a cultura e o propósito normalmente não são preservados no ambiente corporativo como em uma cidade ou um país? Qual é a consequência deste fato para as empresas?
Pela minha experiência de consultor, posso afirmar que, em muitas empresas, a cultura e o propósito são deixados de lado quando ocorre a venda ou em momentos de transição, como a troca de um CEO ou sucessão de herdeiros. E não estou aqui dizendo que as empresas não devam mudar o seu quadro de colaboradores, mas que é preciso haver critérios para isso, além de motivos muito bem definidos antes de um desligamento. Afinal, as organizações estão cada vez mais humanizadas. Mas a atenção aqui é que são justamente nestas ocasiões que pode ocorrer a perda da sua cultura.
Presenciei casos em que mudanças na liderança levaram justamente a isso, prejudicando relações com clientes e colaboradores, provocando danos financeiros e reputacionais. Esse foi o exemplo clássico de uma indústria brasileira com mais de 30 anos que, sob nova liderança, perdeu totalmente sua essência e respeito. Outro case que posso citar envolve um presidente que, ao impor um “ambiente de terror”, desmantelou uma rede de revendedores construída ao longo de décadas, provocando demissões injustas e a perda de boas relações com o mercado. E esses cases de “descontinuidade” — podemos chamar dessa forma —, não ocorrem apenas nas presidências, com os CEOs. Acontecem na média gerência também. Quando um executivo assume um cargo de diretor ou gerente, muitas vezes substitui equipes inteiras de colaboradores que realmente conhecem a empresa. Eles destituem representantes e distribuidores sem ao menos conhecer, de fato, onde está trabalhando. Ao fazer essas alterações de forma mal planejada, os novos gestores ignoram como o mercado está se comportando. Com duas ou três dessas mudanças, a organização perde completamente seu DNA.
Empresas com esses cenários podem sim, ter sucesso, triplicarem o seu faturamento, mas não de forma orgânica e estruturada. Isso apenas ocorrerá por meio de aquisições, investidores e talvez private equity, investimento em empresas que não são listadas na Bolsa de Valores.
Então, fazendo um paralelo, assim como Boston preserva sua história e cultura através da Freedom Trail e outras iniciativas, as empresas também devem se empenhar para manter e fortalecer sua cultura e propósito para, assim, assegurar crescimento sustentável e sucesso a longo prazo. Aliás, esse compromisso já deve ser parte do plano de integração para novos colaboradores, fortalecendo o engajamento interno e com a sociedade. É como diz Walter Longo, renomado executivo brasileiro: “antes, vendíamos propósito através de produtos. Agora vendemos produtos através de propósito. Como se deu essa evolução? E é uma evolução, mesmo? Hoje as marcas representam valores, visão de mundo, contribuindo para uma sociedade mais identitária e inclusiva”.
Mas afinal, de quem é a responsabilidade de manter a cultura da empresa e garantir que ela seja assimilada por todos os colaboradores? A resposta é clara: dos Conselhos, que são os guardiões desse DNA e do RH, participando em conjunto nas decisões estratégicas. Quando se estrutura um Conselho, a visão se expande do operacional para o estratégico e é esse "colegiado" que dará a direção da empresa.
Neste processo, é o RH que operacionaliza e dissemina as informações tanto internamente quanto externamente. Ele é o responsável por evitar ruídos na comunicação com o mercado e os colaboradores. No dia a dia, o RH preserva a cultura organizacional desde o processo de contratação de novos colaboradores, analisando o perfil do candidato em relação aos valores e princípios da empresa, passando pelo plano de integração até o acompanhamento contínuo do profissional em sua jornada. Isso pode parecer simples e muitas vezes passar despercebido, mas é fundamental para garantir a continuidade da cultura empresarial.
Vale lembrar que, não à toa, pesquisas demonstram que uma cultura organizacional saudável traz ainda benefícios financeiros significativos. Um estudo da Grant Thornton de 2019 concluiu que uma empresa média do S&P 500 economizaria US$ 156 milhões anualmente em custos de rotatividade se os funcionários considerassem sua cultura saudável.
ESG e cultura empresarial
Neste contexto ainda, a incorporação de princípios ESG (Ambiental, Social e Governança) é vital. Empresas que mantêm uma cultura de bons princípios implementam práticas de governança que moldam comportamentos éticos interna e externamente, promovendo sustentabilidade e conscientização ambiental. No caso dos colaboradores, por exemplo, conscientizá-los sobre a importância de pequenas ações, como o uso de copos reutilizáveis, o incentivo ao transporte público, o uso de bicicletas como meio de transporte ou até mesmo uma leve caminhada diária são práticas simples que promovem um ambiente mais sustentável e saudável, refletindo a responsabilidade social da empresa e reforçando seus valores positivos perante todos os stakeholders. Logo, segundo a consultoria e serviços digitais Infosys (NYSE: INFY), investimentos em organizações com práticas ESG estão crescendo significativamente, com previsões de atingir US$ 53 trilhões até 2025. Analisando ações que podem afetar o lucro dessas organizações e como a receita pode ser impactada dependendo das abordagens ESG, os dados mostram retornos financeiros positivos. Em outras palavras, os parâmetros ESG trazem um reflexo financeiro importante e as empresas com maior ênfase em iniciativas sociais e de governança, geram melhores lucros. A pesquisa Global com Investidores da PwC de 2021, por exemplo, indica que 79% dos investidores consideram fatores ESG importantes na hora de decidir se vão injetar recursos ou não.
Cases de Sucesso
Tenho estudado muitas empresas que estão se destacando neste sentido e o que mais me chamou a atenção é que a cultura e o propósito fazem parte delas há anos, desde a sua fundação. Estou falando de empresas centenárias, grandes e de médio porte, de capital aberto ou não e familiares. Todas elas, sem exceção, estão engajadas com o ESG de alguma forma e para tangibilizar, citarei algumas:
Montblanc: Famosas pelas suas canetas, tem em seu o propósito bem definido “Cada produto Montblanc é resultado das almas dos mestres artesãos e das suas histórias, as relíquias finais, assim como a Montlanc nomeia seus produtos, tornando-se parte da história única de quem compra seus produtos, criando um vínculo entre almas”.
Wegmans: Empresa familiar, com mais de 100 anos, na quarta geração, está à frente de uma as redes de supermercados com maior crescimento nos EUA e seu propósito está em cuidar de seus colaboradores.“Como empresa familiar, sempre acreditamos que só conseguiremos alcançar os nossos objetivos se primeiro satisfazermos as necessidades individuais dos nossos colaboradores. Essa mentalidade de que o funcionário prioriza tudo o que fazemos”.
Comur: Indústria de conservas conhecida pelas suas lojas que mais parecem um circo, uma homenagem ao povo simples que consumia seus pescados. Por isso, o nome das lojas O Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa “faz questão de manter o processo artesanal em sua produção e não abre mão da qualidade de seus produtos”.
Nuts Factory: Hoje com 20 anos e na terceira geração a frente dos negócios da família, a empresa mantém as mesmas tradições do seu fundador, que idealizou as máquinas para assar suas castanhas na hora “é de incentivar os agricultores locais ao comprarem suas nozes e frutas”.
Tatte Bakery & Café: Considerada uma padaria gourmet, vem se destacando em um mercado com grandes players. Com apenas 16 anos de fundação, já foi citada no NY Times, Food & Wine Magazine, O Magazine, Bon Appetit, Boston Globe. A maior parte de suas 35 lojas está na região de Boston e mesmo com o crescimento, está atenta em preservar sua missão compartilhada: “inspirar, cuidar e nutrir a vida todos os dias”.
Para encerrar esse tema tão empolgante que me obrigou a fazer uma pesquisa densa, mas extremante prazerosa para entender por que algumas empresas tem sucesso e são longevas e outras não passam da fase de maturidade e entram em declínio, deixo aqui uma pergunta para todos os envolvidos na gestão e no investimento em empresas:
Você está comprometido em preservar e disseminar a cultura da sua empresa, respeitando sua jornada até aqui e assumindo a responsabilidade de levá-la aos próximos patamares de longevidade e lucratividade?
Espero que essa pergunta estimule reflexões profundas sobre o papel crucial da cultura e do propósito organizacional na sustentabilidade e no crescimento das empresas.
Clilson Filippetti
é formado em Engenharia Operacional com MBA em Gestão de Negócios pela FIA, em Marketing pela FGV, Pós-Graduado em Marketing e em Administração de Empresas pela FAAP e Governança Corporativa em Empresas Familiares pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC).
www.linkedin.com/in/clilsonfilippetti