Como já tem sido defendido e propalado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em diversos meios e canais, a Autarquia abraça a inovação no mercado de capitais e acredita que ela pode oferecer benefícios tanto a investidores, por meio da agregação de transparência, segurança, eficiência ou a redução de custos nas operações, quanto ao próprio mercado e seus participantes, seja também por meio da redução de custos e aumento da eficiência, ou por abrir espaço para novos produtos e serviços que adicionem valor e promovam o desenvolvimento do ecossistema no qual atuam.
É compreensível de alguns indagar como um regulador setorial pode se engajar na prática com a inovação, se a regulação regula o que já existe e o novo, por seu lado, traz por premissa algo que ainda não existe, ou seja, não está previsto na regulamentação posta.
Este artigo pretende ir além do princípio geral constitucional de que é permitido ao particular fazer tudo o que não é expressamente vedado pela lei. Afinal, num mercado como o de capitais, que repousa com ênfase em princípios como os da segurança jurídica, previsibilidade, confiança e credibilidade, sabemos que a ausência de previsões normativas pode acabar minando a inovação na prática em muitos tipos de negócio, ainda que em tese ou, digamos, no campo jurídico-abstrato, não devesse ser assim.
Ciente do papel que pode e tem que exercer nesse campo, a CVM não se furta a dar passos adiante. Muitos atribuem o primeiro grande exemplo nesse sentido à iniciativa de sandbox regulatório previsto na Instrução CVM nº 626, de 15/5/2020. Sem desmerecer a iniciativa, que representa sim um grande canal de inovação ao oferecer um ambiente acompanhado pelo regulador para iniciativas que dependem do afastamento temporário e fundamentado de certos requisitos previstos em norma, a verdade é que por meio de sua história a Autarquia já fazia uso da faculdade de conceder dispensas regulatórias específicas para operações, produtos e serviços que, por outros meios até então ainda não pensados, atendiam os objetivos regulatórios mesmo que sem estritamente cumprir esse ou aquele dispositivo normativo. Como sabido há tempos, fundos de investimento, veículos de securitização e ofertas públicas sempre foram os temas líderes desse processo de tão grande histórico.
Igualmente verdade que a limitação de recursos é uma variável presente a ser levada em conta para a gestão do regulador. Nesse contexto é importante mencionar, em específico no contexto do sandbox, o recente acordo celebrado com a Federação Nacional de Associações dos Servidores do Banco Central (Fenasbac), com vistas a alavancar o uso do conceito em projetos futuros. Se de um lado a decisão se mostra inteligente ao aproveitar a experiência e expertise daquela federação em iniciativas de semelhante natureza (com destaque para o Laboratório de Inovações Financeiras Tecnológicas – LIFT), de outro, a própria CVM continua reconhecendo a importância dessa pauta e demonstrando, por meio do acordo, seu compromisso e engajamento com ela.
Além desses dois grandes vetores, é digno relembrar outras iniciativas da mesma natureza. Uma nem sempre lembrada, mas com relevante potencial para fomentar a inovação é a previsão, instituída no processo regulatório da CVM por meio do artigo 26 da Resolução CVM nº 67, do Regime Regulatório Experimental. Embora ainda recente, o conceito permite à Autarquia a edição de “atos normativos de caráter temporário, a partir dos quais se buscará avaliar empiricamente os benefícios e os procedimentos mais adequados para a implementação da solução preconizada”, procedimento esse que, por sua própria natureza, fica dispensado da elaboração de Análise de Impacto Regulatório (AIR) e de Consulta Pública (outrora conhecida pelo mercado como Audiência Pública), imprimindo um dinamismo ímpar à iniciativa. É a Comissão na vanguarda, mais uma vez, agora por meio do uso da experimentação como ferramenta de aprendizado e exercício de regulamentar. Algo que soa a princípio mais típico para os agentes de mercado na tentativa de inovar, mas do que ela se valeu para participar, de forma colaborativa, na construção de ideias que possam alçar o mercado de capitais a novos patamares.
Os próprios projetos regulatórios trazidos recentemente ao mercado evidenciam o caráter propositivo e de liderança do regulador na pauta de inovações no mercado. Um exemplo dessa abordagem foi o recente Edital de Consulta Pública SDM nº 1/2024, que publicou proposta de regulamentação, justamente em caráter experimental como previsto na Resolução CVM nº 67, com o objetivo de estabelecer um regime simplificado de registro e oferta de valores mobiliários por parte de emissores considerados, nos termos do artigo 294-A e 294-B da Lei nº 6.404/76, como companhias de menor porte. Dentre outras novidades, o regime prevê, por exemplo, a obtenção do registro de emissor na CVM de forma automática, após listagem em entidade administradora de mercado organizado; a substituição do formulário de referência, o prospecto e a lâmina por um único formulário; a divulgação de informações contábeis em períodos semestrais, e não mais trimestrais; a realização de oferta pública de distribuição de valores mobiliários de até R$ 300 milhões sob regime de "oferta direta", com dispensa de registro na CVM e de contratação de um coordenador líder; dentre outros pontos.
Mas o trabalho do regulador vai além da regulamentação propriamente dita. Também em sede de orientações e esclarecimentos, é notável a postura que marca sua atuação nos casos concretos que lhe são submetidos, permitindo que o mercado continue avançando com as já defendidas segurança jurídica e previsibilidade tão necessárias ao segmento. Exemplos disso foram os Ofícios Circulares CVM/SIN/nº 1 e 11/2018, ao autorizar a constituição de fundos de investimento de criptoativos; os Ofícios Circulares nº 4 e 6/2023/CVM/SSE, ao disciplinar a possibilidade de emissão de alguns tipos de tokens de valores mobiliários, em particular os ligados a operações de securitização; e o próprio Parecer de Orientação nº 40/2022, ao estabelecer balizas mais gerais para o ecossistema cripto e seu relacionamento e integração com o mercado de capitais.
Assim, é de se reconhecer quão próxima tem sido a atuação do regulador setorial junto ao mercado no tema da inovação, seja reagindo rapidamente às novas ideias, produtos e serviços, seja estabelecendo ferramentas de governança internas e parcerias com outros agentes que alavanquem iniciativas, seja efetivamente propondo atualizações normativas fomentadoras de inovação. Dessa forma ela se posiciona além de qualquer dúvida na promoção e incentivo do desenvolvimento do mercado de capitais nacional, sob a crença de que a inovação pode incrementar ainda mais o nível de segurança, eficiência e transparência das operações e produtos regulados. Além disso, também pelo potencial de redução de custos para investidores e participantes do mercado, mas não apenas em favor da diminuição de preços e indução de mais concorrência e entrantes, mas também - o que é ainda mais importante - pela democratização do acesso a esse mercado por emissores e investidores, ao permitir sua entrada com valores cada vez menores e mais escaláveis.
Daniel Maeda
é Diretor da CVM, representa a Autarquia em fóruns nacionais, como a Iniciativa de Mercado de Capitais (IMK) e a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), e internacionais, como a Organização Internacional de Valores Mobiliários (IOSCO).
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