Nós, mulheres, representamos quase 52% da população brasileira e somos as mães dos outros 48%. Somos maioria nas universidades, tanto na graduação quanto na pós graduação. Temos mais tempo de escolaridade que os homens. Somos responsáveis por 80% das decisões de consumo do país e pela gestão de 50,9% dos lares brasileiros. Trabalhamos em todos os setores da economia. Todavia, nossa presença nas posições de poder e alta liderança nas empresas e conselhos de administração, sejam eles de origem privada ou pública, ainda se resume a apenas 17% de acordo com a mais recente pesquisa “Panorama Mulheres 2023” feita pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e pelo Talenses Group.
Para entender as origens dessa disparidade, é fundamental retrocedermos um pouco na história e na cultura patriarcal e machista em que fomos forjados. Se tudo começa pela educação, precisamos lembrar que, segundo a lei escolar do Império, acreditava-se que as meninas tinham menos capacidade intelectual que os meninos. A primeira grande lei educacional do Brasil, de 1827, determinava que, nas “escolas de primeiras letras”, meninos e meninas estudassem separados e tivessem currículos diferentes.
As meninas aprendiam a ler e a escrever, as quatro operações matemáticas e as “artes do lar”. A elas era reservada a educação doméstica, que as preparava para o casamento e para o mundo privado, onde seriam subordinadas ao chefe da família. A participação social da mulher era reduzida às funções de dona de casa, reprodutora e educadora dos filhos.
Apenas em 1879 as mulheres conseguiram permissão do governo para entrar na faculdade. Todavia, as solteiras deveriam apresentar a licença dos seus pais e as casadas, autorização por escrito de seus maridos. Isso fazia com que o número de mulheres que chegavam ao ensino superior fosse muito baixo. Além de todo preconceito da sociedade, elas não frequentavam cursos preparatórios, o que dificultava ainda mais seu ingresso na faculdade.
A partir da década de 1950, o desenvolvimento industrial do Brasil fez com que houvesse um aumento na procura das escolas de ensino médio, com o objetivo de preparar mulheres para o setor de serviços. Ainda na década de 1950 e na de 1960, e de modo marcante até o final do século XX, nosso acesso à universidade e à diversificação dos campos de trabalho foi paulatinamente se ampliando.
Vale lembrar que, até 1962, as mulheres casadas só podiam trabalhar fora se o marido permitisse. E a autorização poderia ser revogada a qualquer momento, de acordo com o que previa o Código Civil de 1916, que considerava as mulheres casadas "incapazes", e também as impedia de ter conta em banco, viajar ou ter um comércio, sem autorização do marido.
Nos anos 1970, os conselhos empresariais começaram a se popularizar no Brasil, atendendo a necessidade de conciliar os interesses dos acionistas aos da gestão. Esse movimento coincide com a nossa entrada no mercado formal de trabalho, ocupando posições para além da profissão de professoras. Durante algumas décadas e até bem pouco tempo, os conselhos de administração foram formados exclusivamente por ex-CEOs brancos, idênticos, com o mesmo tipo de formação, experiência, trajetória e repertório. Uma espécie de tropa de elite, um clube de amigos irmãos camaradas.
Um ambiente exclusivamente masculino, um reduto para a aposentadoria dos líderes empresariais, que garantia status, excelente remuneração, menos trabalho e uma longevidade profissional aos homens bem-sucedidos do mercado. Aos poucos, muito mais lentamente do que o necessário, por uma crescente pressão do mercado, esse contexto vem mudando. Em 2018, tínhamos 9,4% de mulheres em conselhos de administração; em 2019, 10,5%; em 2020, 11,5% e, em 2021, 14,3%.
De acordo com a segunda edição da pesquisa “Análise da participação das mulheres em conselhos e diretorias das empresas de capital aberto” do IBGC (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa), das 337 empresas pesquisadas em 2022, 78,9% contavam com mulheres em seus conselhos e/ou diretoria. Todavia, num universo de 5.424 profissionais analisados, apenas 773 (14,3%) eram mulheres.
Um levantamento realizado pela B3 no ano de 2021 com 408 empresas de capital aberto, contando com representantes de todos os segmentos da listagem, mostrou que apenas 32% dos Conselhos de Administração contavam com uma mulher e 6% tinham três ou mais. Segundo o Brasil Board Index, também de 2021, 35% dos conselhos pesquisados não tinham nenhuma mulher em sua composição.
Numa pesquisa de 2022 da KMPG, feita com mais de 700 conselheiros e membros de comitês do mundo, vimos nosso retrato: 63% dos conselheiros do Brasil afirmavam não fazer parte de nenhuma minoria (étnico-racial, gênero ou orientação sexual). Não à toa, investidores têm cobrado, cada vez mais, a diversidade nos conselhos de administração das empresas como condição para realizar seus investimentos, como a Black Rock, que anunciou seu posicionamento favorável às empresas que tenham mulheres em seus conselhos de administração.
A própria B3 lançou, em agosto de 2023, o IDIVERSA, primeiro índice latino-americano a combinar critérios de gênero e raça para selecionar as empresas que irão compor a carteira. Este indicador reconhecerá as companhias listadas que se destacam em diversidade, além de promover maior representatividade de grupos sub-representados (gênero feminino, pessoas negras e indígenas) no mercado.
De acordo com as medidas propostas, companhias brasileiras listadas em bolsa devem eleger ao menos uma mulher e um integrante de comunidade sub-representada (pessoas pretas, pardas ou indígenas, integrantes da comunidade LGBTQIA+ ou pessoas com deficiência) para seu conselho de administração ou diretoria estatutária até 2026 -sendo o primeiro membro eleito até 2025 e o segundo, até o ano seguinte. O acúmulo de duas características (ser mulher e integrante de comunidade sub-representada) pelo mesmo profissional não é suficiente para atender a norma. São necessários dois membros.
Fato é que a B3 tem 475 empresas listadas, e mais de um terço delas ainda não possui nenhuma mulher no Conselho. Do total de assentos, apenas 16% são ocupados por mulheres.
De acordo com o “Board Monitor Brazil 2023”, de cada dez pessoas indicadas a posições de conselho em 2022, sete eram homens. No total foram 93 indicações realizadas em 2022, em 32 empresas, contra 98 renovações feitas em 2021.
A maioria dos novos conselheiros eram CEOs (45%) ou CFOs (11%), e isso torna mais difícil a nomeação de mulheres, uma vez que elas ainda são minoria nesses cargos. Adicionalmente, dois terços dos indicados já tinham experiência anterior em conselhos. Segundo Ana Paula Chagas, sócia da Heidrick & Struggles no Brasil, entre um homem que já participa de oito conselhos e uma mulher que exercerá a função pela primeira vez, a escolha quase sempre será pelo homem.
De cinco setores analisados, o único que indicou mais mulheres como conselheiras em 2022 foi o de tecnologia e serviços. Elas ficaram com 56% das indicações. O setor industrial foi aquele com a predominância masculina mais gritante: apenas 23% do total de indicados eram mulheres.
Os dados de outra pesquisa de 2023, intitulada “Liderança Empresarial: Um estudo sobre CEOs e Conselhos de Administração”, realizada pela Vila Nova Partners e Drixx ITAdvisors indica que 88% dos conselheiros brasileiros são brancos, 2% pardos, 1%, negros, e 1%, amarelos. Os demais 8% não responderam.
Em relação a gênero, 78% são homens, 19%, mulheres, 1%, outros, e 3% preferiram não responder. Entre os presidentes de conselhos das 83 empresas analisadas, somente 5 são mulheres (6%). Segundo Fernando Carneiro, sócio sênior da Vila Nova Partners, para a posição de presidente de conselho, geralmente buscam-se pessoas que já tenham experiência em presidência de conselho, e talvez esse seja o principal fator que impeça o aumento da participação feminina. Além disso, segundo ele, a experiência prévia como CEO também pesa na seleção, outro fator que dificulta uma maior presença feminina nas lideranças dos conselhos.
Apesar dos dados inquietantes, há mais mulheres em conselhos hoje do que em 2021 (15%). Entre todos os grupos analisados, 92% apresentam ao menos uma mulher -eram 80% em 2021 - e 27% têm três ou mais mulheres. E isso se deve em grande medida à articulação de iniciativas e movimentos, assim como programas de formação de mulheres conselheiras.
Entre eles estão, na área privada, o Programa Diversidade Em Conselho – PDEC (ação conjunta da B3, Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), International Finance Corporation (IFC), Spencer Stuart e Women Corporate Directors (WCD), com o objetivo de ampliar a diversidade nos conselhos de administração); o Programa Conselheira 101 (conjunto de esforços da KPMG e da WCD voltado ao treinamento de mulheres negras para a participação em conselhos; o 30% CLUB (campanha global que visa aumentar a equidade de gênero no conselho e na alta administração das companhias listadas em bolsa); o Women On Board (iniciativa que visa reconhecer, valorizar e divulgar a existência de ambientes corporativos que contam com ao menos duas mulheres em conselhos de administração e demonstrar os benefícios dessa diversidade ao mundo empresarial e à sociedade), além do Advanced Boardroom Program for Women - ABP-W (programa de formação de conselheiras, com mais de 14 turmas já concluídas e uma comunidade com mais de 400 executivas em organizações de grande porte).
Na área pública temos a PL 1246/2021 que criou cota obrigatória mínima de 30% de participação de mulheres em conselhos de administração de companhias abertas, de empresas públicas, de sociedades de economia mista e outras companhias em que União, Estado ou Município sejam controladores. O PPL 1246/2021 inovou ao enunciar o interseccionalidade como um dos requisitos a serem observados na composição dessa reserva obrigatória proposta. Além disso, a Comissão De Valores Mobiliários (CVM), por meio de processo de audiência pública, reformou a Instrução CVM 480 através da Resolução CVM 59, de 22 de dezembro de 2021. Esta regra incumbiu à companhia aberta a obrigação de divulgação sobre questões ambientais, sociais e de governança em seus formulários de referência, incluindo dados sobre a diversidade nos cargos de administração.
Todavia, apesar de todas essas iniciativas, se fizermos uma conta básica, perceberemos que nós, mulheres, ainda ocupamos apenas 1/6 dos cerca de 5 mil assentos e, a cada renovação de aproximadamente 100 postos nos conselhos, ficamos com menos de 1/3 deles. Nesse ritmo, considerando todos os vieses e pré-requisitos que já relatamos aqui, para zerar essa desigualdade vamos precisar de todo mundo. Temos que acelerar o passo e agir em bloco para que, ainda neste século, não tenhamos mais que perguntar “onde estão as mulheres dos conselhos de administração?”.
Neívia Justa
é líder em comunicação e marketing, com mais de três décadas de experiência na área. Atualmente, como Diretora na FSB Holding lidera equipes e estratégias de comunicação e marketing. Fundadora do movimento #OndeEstãoAsMulheres, é membro do Conselho Consultivo do 30% Club Brazil.
30percentclubbrazil@30percentclubbrazil.org