Direito Societário

BUSINESS JUDGMENT RULE & CVM: COMO O BRASIL TEM JULGADO A DISCRICIONARIEDADE DOS ADMINISTRADORES

A responsabilidade dos administradores de companhias abertas tem sido um dos temas centrais do direito societário no Brasil. Afinal, onde termina a liberdade de gestão e começa a responsabilização por decisões equivocadas? A resposta para essa questão passa pela aplicação da Business Judgment Rule, princípio consolidado nos Estados Unidos e que, aos poucos, tem moldado o entendimento da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Origens e fundamentos da Business Judgment Rule
A Business Judgment Rule surgiu no direito anglo-saxão como um mecanismo de proteção aos administradores. Em essência, essa regra presume que as decisões tomadas por conselheiros e diretores são legítimas, desde que feitas de forma informada, de boa-fé e no melhor interesse da companhia. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte de Delaware consolidou essa doutrina no caso Aronson v. Lewis, estabelecendo que caberia aos acionistas provar eventuais violações dos deveres fiduciários para afastar a presunção de legitimidade das decisões empresariais.

A ideia por trás da Business Judgment Rule é evitar que os tribunais se tornem um "conselho de administração paralelo", revisando todas as decisões empresariais e desestimulando a tomada de riscos necessária para o desenvolvimento econômico, com base, inclusive, em fatos que não eram disponíveis à época da tomada de decisão. Afinal, é inevitável que algumas decisões, ainda que bem fundamentadas, resultem em prejuízo.

No Brasil, a Lei das Sociedades por Ações (Lei 6.404/76) não traz a Business Judgment Rule expressamente, mas o artigo 159, §6º estabelece que administradores só respondem por prejuízos se agirem com culpa ou dolo. Para muitos juristas, esse dispositivo é uma versão nacional da Business Judgment Rule. Outros, no entanto, defendem que a aplicação da regra ainda precisa de mais desenvolvimento, especialmente no âmbito do mercado de capitais.

A posição da CVM e os desafios da aplicação no Brasil
A CVM, como principal reguladora do mercado de capitais, tem sido o palco onde a Business Judgment Rule vem sendo discutida e aplicada no Brasil. Em diversos julgamentos, a autarquia se debruçou sobre casos em que administradores foram questionados por decisões estratégicas que resultaram em prejuízos para acionistas.

No Processo Administrativo Sancionador CVM SEI nº 19957.004318/2021, por exemplo, a CVM analisou a gestão de uma administradora de fundos de investimentos e concluiu que não cabia ao órgão julgar a suficiência ou juridicidade do processo decisório da gestora, reforçando que a CVM não deve intervir no mérito das decisões empresariais, desde que tomadas com diligência e boa-fé.

Já no Processo CVM SEI nº 19957.009118/2019-41, a CVM reforçou o caráter subjetivo da avaliação econômica de ativos e absolveu administradores acusados de violar o dever de diligência. O entendimento foi de que a CVM não deveria reavaliar decisões de negócios quando estas fossem justificadas e seguissem um processo adequado de tomada de decisão.

No entanto, nem sempre a CVM adota uma postura deferente às decisões empresariais. No Processo CVM SEI nº 19957.011654/2019-14, o Diretor Henrique Machado destacou que a aplicação da Business Judgment Rule no Brasil não pode ser irrestrita. Ele argumentou que, para que a proteção da regra se aplique, é necessário que o processo decisório tenha sido bem estruturado, documentado e fundamentado. Essa visão busca impedir que administradores utilizem a Business Judgment Rule como um escudo genérico para justificar qualquer decisão mal planejada ou que beneficie indevidamente certos acionistas em detrimento de outros.

Governança corporativa e o papel da Business Judgment Rule
O debate sobre a Business Judgment Rule no Brasil está diretamente ligado à governança corporativa. Para que a proteção da regra seja aplicada, os administradores precisam demonstrar que suas decisões foram tomadas com base em informações adequadas e justificativas sólidas. Isso reforça a importância de conselhos de administração bem estruturados e diversos, com a lavratura das atas de reuniões detalhadas, mas ainda que em forma resumida, documentação robusta, fundamentos e justificativas, eventualmente em laudos e opiniões de especialistas, a fim de cumprir com os deveres de diligência e lealdade, visando ao melhor interesse da sociedade.

Empresas que negligenciam esses aspectos podem se ver mais expostas à responsabilização de seus administradores. Afinal, a Business Judgment Rule não é um salvo-conduto para decisões ruins – ela protege a forma como a decisão foi tomada, não o resultado em si. A CVM já manifestou sua preocupação com a sua correta aplicação, ao mesmo tempo em que ressalvou a liberdade e a discricionariedade dos administradores na gestão dos negócios sociais, desde que o processo decisório tenha sido realizado de maneira informada, refletida e justificada, com base em fatos relevantes e disponíveis à época.

Outro ponto relevante é o impacto dessa discussão para investidores. Em um mercado de capitais saudável, deve haver segurança jurídica para administradores assumirem riscos necessários, mas também mecanismos eficazes para evitar abusos e fraudes. A maneira como a CVM e os tribunais lidam com a Business Judgment Rule afeta diretamente a confiança dos investidores, tanto nacionais quanto estrangeiros.

Conclusão
A CVM tem caminhado para uma aplicação mais consistente da Business Judgment Rule, evitando intervir no mérito das decisões empresariais, mas exigindo processos decisórios estruturados e diligentes. Por sua vez, o nível de governança corporativa das organizações é fator fundamental para assegurar um melhor processo decisório às sociedades, ao mesmo tempo, em que contribui para a defesa dos administradores quando da tomada de decisões estratégicas.

Esse movimento é essencial para que o Brasil tenha um mercado de capitais mais robusto e previsível, no qual administradores possam assumir riscos de forma diligente e responsável, sem receio de serem punidos apenas por consequências indesejadas, evitando-se responsabilização por processos decisórios incompletos, falhos ou desleais.

Em um ambiente de negócios cada vez mais complexo, a Business Judgment Rule é um elemento-chave para garantir um equilíbrio saudável entre a liberdade de gestão e a proteção dos investidores. A evolução desse entendimento na CVM será determinante para a segurança jurídica dos administradores e para a atração de capital ao mercado brasileiro.


Rosangela Valio Camargo
Advogada e consultora, conta com 26 anos de atuação na área jurídica empresarial corporativa, societário, contratos, M&A, governança corporativa e operações de equity e debt. Rosangela atuou em empresas de capital aberto e fechado, startup, holdings familiares, no setor elétrico, em previdência complementar, e no setor da construção civil, e foi head do jurídico societário e governança corporativa de empresa listada no Novo Mercado/B3. Rosangela foi membro do IBRI e atualmente é membro do IBGC, IBRADEMP e da Comissão Especial de Direito Bancário da OABSP, tendo sido membro do Conselho Fiscal da EnergisaPrev. Graduada em Direito pela Faculdades Integradas de Guarulhos - FIG, tem LL.M. (Direito Societário) pelo INSPER e pós-graduação em Contratos pela FGV Direito, além de formação de Conselheiros de Administração pelo IBGC. 
rosangela@valiocamargo.adv.br

Gustavo de Abreu Guerrero Ungarello
Advogado do Escritório Miguel Neto Advogados Associados, com sólida experiência em consultoria jurídica societária, governança corporativa, planejamento patrimonial e sucessório, fusões e aquisições e mercado de capitais. Atuou em escritórios renomados e em departamentos jurídicos de empresas listadas no Novo Mercado. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, possui pós-graduação em Direito Societário pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e certificação internacional em Direito do Mercado de Capitais Europeu pela LUISS School of Law. Publica artigos sobre direito societário e governança.
ggu@miguelneto.com.br


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